sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Historia de Verão - Parte I


- Por Elis Barbosa
Guarda que era ainda uma menina quando passava alguns preciosos dias de suas eternas férias de verão no sítio do avô amado. Aqueles dias quentes, acompanhados de brisa boa, nascida das copas das diversas árvores que sombreavam o mundo, eram de conforto, pois que podia ter a liberdade que quisesse.

Moravam no sítio vacas e seus bezerros, éguas de montaria (mas nem todas), galinhas com seus pintinhos, um ou outro peru que, ao som dos assobios recém aprendidos, respondiam à menina que achava muita graça daquilo. Havia ali também variedade de plantas, algumas de comer, outras de enfeitar, sendo que sua favorita era a erva de capim-limão porque, a despeito do calor, faziam chá todas as tardes, seu avô e ela. Era o momento que tinham. Colhiam a erva cortante, lavavam, dobravam com facilidade aquelas folhas estranhas, que punham dentro da chaleira enorme para tomarem dela a essência.

O leite, o queijo, a salada, os temperos, as frutas, vinham daquelas mãos ásperas e fortes do homem que serviria de medida, sem que ela ainda o soubesse, para os outros que viriam. Este era mais forte que o pai, tinha consigo, dada pela própria natureza, a primitiva força da terra que já a emocionava, era mais sábio que o pai, era o avô.

Cedo pela manhã, já pronta para acompanhá-lo na soltura do gado, entretinha-se enquanto escolhia sua vara, quando viu chegar o desconhecido, era quem de costume ajudava seu avô com as tarefas matinais, mas disso não o sabia. Chegava com um chapéu de couro na cabeça, munido já de sua própria vara, e deu nela uma vontade de ficar olhando e uma vergonha de sorrir. Era ainda menina quando, pela primeira vez sentiu o coração mudar seu ritmo diante da imagem de outrem, de um jeito que não tinha acontecido antes.

- Seu Tito tá?

Dirigiu-se o menino a ela, sem deixar que se recobrasse. Chamou o avô e descobriu que aquele um haveria de aparecer por lá mais vezes.

Divididas as tarefas, encaminharam-se ela e seu avô, para a soltura do gado, enquanto o menino ficava, muito à vontade por ali, com outros afazeres. Reparou que era ágil, que falava pouco, que tinha intimidade com o sítio, com o avô. Sentia uma mistura estranha se fazendo dentro dela: ciúmes, vontade de rir, um frio na barriga, um quente nas faces, e uma leve taquicardia.Enquanto seguiam o caminho de volta pediu para montar a égua e podia, hoje podia. Eufórica, correu para casa a fim de tomar um pouco de água enquanto o avô preparava a montaria. Mas qual não foi o susto, quando se deparou com a imagem do menino, trazendo para ela a égua, montado nela, sem sela, em pêlo. Teve, sem o saber, seu primeiro pressagio de mulher, que ainda não o era, teve certeza de que aquela imagem jamais a abandonaria. Parara de respirar e sentia a mesma alquimia percorrer-lhe o corpo. Uma vez mais.

domingo, 30 de agosto de 2009

Tarde em Olinda


- Por Roberta Mendes

Chegando em Olinda ruas cantantes a oferecer tapioca e capoeira meu Deus tanto aroma tantos timbres tanta cor. Irrompe a alfaia. O coração, em prontidão, dispara.

Estou alerta, alerta, como se tivesse acordado-entontecido em meio a um grande perigo. É o Maracatu!

Sofro da ascendência inescapável de seus tambores e danço, demônio ágil, faces em fogo, lábios de sangüíneo carmim.

O tocador me espreita. Sou um bicho que caminha excessivamente perto, eriçando-lhe os pêlos. Seus olhos me fixam e instigam instintos de predação. Medimo-nos sem pressa, serpente e encantador. Mortal minha languidez. Mortal sua atenção. Só um homem sabe fitar assim, maciçamente. Autoritariamente. Como a anunciar: és minha.

Não nos interessa o embate. A tensão mesma nos basta. Cortejamos a latência, a energia em suspensão. Tudo gira em vertiginosa ciranda. Só nossos olhos imóveis, numa intrigante ausência de velocidade, eixo em torno de que gira a ciranda Olinda gira a cidade de mãos dadas.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Selo Blog de Ouro


Deve-se ao amigo em letras Flávio Corrêa de Mello a mais que generosa indicação de nosso modesto espaço ao selo de Blog de Ouro. Imaginem nosso espanto, na igual proporção de nosso contentamento. E lembrarmos de como era bom ter as lições condecoradas de estrelas!

Ainda por cima, o jogo é daqueles de que mais gostamos: brincadeira de passar adiante! Se anel ou palavra, reinventada ao passar, ao selo que sela admirações mútuas, tudo tem o gosto das coisas compartilhadas. Corrente assim não se quebra! Depois de muito soprar os dados entre as mãos brincadeiras, lançamos, Elis e eu, as pedras da amarelinha, que marcaram as seguintes casas para o percurso do leitor:

=> O N Z E P A L A V R A S: espaço desenvolvido por Ana Karina Bucciarelli, que, ao mesmo tempo, se revelou e se descobriu no próprio blog enquanto Autora. E, ainda por cima, de excelentes textos, marcados por uma linguagem extremamente poética e delicada. Outro ponto forte do espaço é o diálogo perfeito entre os textos e as ilustrações que lhe acompanham, potencializando a força imagística de suas metáforas precisas.

=> BUTECO DO EDU: blog de um excelente contador de histórias. Edu é, enquanto narrador, o maior personagem de si mesmo, com seu humor ácido e sua ironia desconcertante. Seus textos, geralmente longos, são tão deliciosamente fluentes que conduzem o leitor, com leveza, até a última linha.

=> DIDONEANTE: em contraste com o universo extremamente masculino do Buteco do Edu, temos a escrita feminina, mas não menos vigorosa, da Débora Poulain.

=> O COLECIONADOR DE PEDRAS: espaço onde o escritor e poeta Sérgio Vaz conta, com imagens contundente, sobre suas vivências de periférico, de engajamento literário, de dentro de uma São Paulo revelada a partir da COOPERIFA, em realidade humana. A qualidade literária e as possibilidades infinitas de impressões que o texto do poeta deixam emociona, reclamando reflexão, sensibilidade e entrega.

Outros dois blogs que indicaríamos, quais sejam o TREMA LITERATURA (diversos autores) e o RIO MOVEDIÇO (do próprio Flavio Corrêa de Mello), cuja fluência literária se antevê pelo próprio título do blog, já foram, como não poderiam ter deixado de ser, indicados por outros de seus seguidores-admiradores, o que apenas comprova, pela justa profusão de indicações, a qualidade da literatura ali encontrada, que nos cativa a todos, tornando-nos seus fiéis leitores.

Ao indicarmos quem nos indicou, fechou-se o círculo de uma brincadeira nova: o amigo-público! Ou seria a roda da ciranda de palavra em que giramos todos de mãos dadas e olhos correntes uns sobre as páginas dos outros? Que a brincadeira continue sempre!


Conosco agora não tá!


segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Apresento-lhes...



...a
PALAVRA EM FUGA, um novo espaço de criações autorais, surgido do encorajamento de amigos que me fazem coro à voz interior, convidando-a a expressar-se.

Agradeço, especialmente, à Elis, por ter tomado a iniciativa precursora, PARA EU PARAR DE ME DOER, pela delicadeza de saber que o primeiro passo sai-nos sempre mais fácil se temos o amparo de uma mão amiga que se une à nossa.

E que ninguém imagine que o novo projeto foi em alguma coisa diferente, pois ele tem dez dedos e O N Z E P A L A V R A S desta outra amiga-irmã, a Ana Karina Bucciarelli, que tanto nos tem inspirado a seguir o chamado das letras, através da riqueza de seus textos e de seu entusiasmo pelo aprendizado do fazer literário.

Fica então o convite para seguirem-me a
PALAVRA EM FUGA, no que ela consiga ir capturando pelo caminho...

Abraços da
Roberta Mendes

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Ciclos





- Por Elis Barbosa



Fora do território nacional, a muita distância do seio morno da mãe tropical fazia-a flor saudosa e murcha.

Era o banzo. O banzo de quem se via escravo dos seus dias primeiros, apegada feito trepadeira que se alimenta da seiva do mundo real que lhe vira abrir os olhos, banzo de quem partiu sabendo no íntimo que não haveria de ser nada, nem ninguém, em lugar onde não se bate o tambor para fazer vibrar o coração.

Eram passados meses de frio fino e forte, pontiagudo, de fazer sangrar os lábios tão mais acostumados ao sal do mar que ao amargor daquele frio calante.

Nunca dantes a natureza havia parecido aos olhos tão plástica... era um mundo todo de mármore, em matizes de cinza e branco. Frio e estranho, cujo silêncio era interrompido, de quando em vez, por um assovio do outro mundo, trazido pelo vento de fazer chorar. Era tudo de uma placidez rascante donde não se podia esperar mais... nada! Até as cores já tinham ido todas com a despedida das folhas...

O vazio oco que se apoderava de tudo servia-se de sua alma, tomando-a de naco em naco, um pouco mais, e mais um pouco, deixando-lhe já quase que sem palavras, e a ausência das palavras seria seu fim mais definitivo. Frio cinza de silêncio molhado. Olhos apagados, sem mais doçuras, corpo tapado, sem mais loucuras! Nada.

Agonizando naquele infinito alheamento voluntário, pois que viver parecia ter esgotado suas possibilidades, olhava o nada à sua volta, espremendo no peito o último desejo autêntico de vida que cismava em esvair-se, animando a esperança que insistia em desmaiar. Era já quase uma resignada.

Quando então, aconteceu... horas e horas daquele observar vazio revelou, abrupto feito tapa, uma possibilidade. Será? Apertou os olhos de noite, buscando o foco do que já era míope.

Sentiu a presença da Mãe, acolhendo e aquecendo mesmo sem abraçar. Pensou que era confirmação, sentiu crescer o medo enorme de tudo não passar de ilusão, gemeu baixinho.

Dirigindo então, àquela que era a origem do mundo, o olhar suplicante por respostas, fitou-lhe ansiosa. Olha filha, olha só, está vendo? Seguiu o dedo amoroso que apontava justamente para a ilusão que lhe acudia as preces, estremeceu. Olhou para a Mãe que já tinha no rosto o sorriso da certeza, olhou para o chão e viu, e viu que ela viu também! Lá estava, era real, era a terra desenterrando-se de ausência, abrindo-se toda para o sol que haveria de já estar voltando!

Eu não disse a você que a primavera chegava? Hein? Eu não disse? Chegou!


Era um tufo de grama, era a vida voltando! E para ter certeza de que tudo correria da melhor maneira possível, resolveu então, regar o mundo com a lágrima derradeira, que marcaria o início de seu regresso.






sexta-feira, 31 de julho de 2009

PINDORAMA - A VERDADEIRA HISTÓRIA DOS SETE ANÕES


- Por Roberta Mendes

Vem de longe o pitoresco comboio, serpenteando pela estrada. Asfalto, terra batida, tudo deixa para trás. Sobre as rodas vem, como convém a todo viajante, apenas o essencial: a família. E a casa.

Assentam acampamento. Desdobram a lona, sobre o esqueleto desmontável, alvenaria frágil de encaixes e cordas, pinos e parafusos. Sobre o terreno, antes baldio, o burburinho do circo. A novidade, a palavra-rastilho, percorre a cidade em polvorosa.

Manhãzinha, os curiosos se ajuntam em torno da armação. A barriga de lona respira, varada, quando em quando, pelo vento. Não há o que ver. O circo dorme. Ou é a cidade que sonha anõezinhos, numa brincadeira nova de contar: um, dois, três anõezinhos! Quatro, cinco, seis anõezinhos!

Disseram que eram sete, amuou-se um menininho, exigente. O sétimo não se vê, esclareceu o narrador. É Cleidy, irmã mais velha, que se recolheu da vida-espetáculo para viver a vida-bastidor, a ensinar a ler a terceira geração do circo.

Mas tem gargalhada? Tem, sim, senhor! Quem não sabe rir de si mesmo? O palhaço feito um acrobata do tombo é o domador do ridículo, capaz de transformar a chacota iminente no aplauso abonador. Então, é possível ser diferente?, pergunta-se, intrigada, a cidadezinha. Sobretudo, quando se está de passagem! - responde a trupe em jogral.

No microcosmo itinerante, o anão tem voz de comando: patrão e contratante. Presta serviços. Consome. Goza, em cada novo povoado, da cidadania exígua de todo forasteiro, olhado, a um só tempo com curiosidade e desconfiança. Assim, a pouca estatura é só um estranhamento a mais. Alguém dirá que fogem os pequenos artistas. Calhando, tem seu fundo de verdade. Mas também é verdade que não se eximem de estrelar grandes amores.

Têm a valentia dos que enfrentam em si mesmos a maior adversidade. Crescem a fórceps, para muito além da insegurança que vem de olhar o mundo sempre de baixo (tudo parecendo tão grande!), de esbarrar na proibição de trincos altos, para portas que jamais se abririam, não fosse pelo “Por gentileza ...”, solicitado com desconcertante simplicidade.

Palavra-mágica da humildade ou da altivez? Eis que aprendem a ser amigos da própria condição e se assumem, sem a máscara de parecer. Condenados a ser como são, sem disfarce possível, os anõezinhos vivem e convivem no mundo portátil de Pindorama. E de tanto serem o que são é que encantam as cidadezinhas, tão cansadas de parecerem consigo mesmas, no eterno jogo de refletir-se, platéia forçada da performance do próprio, gasto repertório.

No fundo, sabem os anõezinhos que o tamanho é, também, uma mera questão de perspectiva e que, se os olham bem rentes, colados à transparência da vida, há que se lhes reconhecer grandeza e charme e até - quem diria? - admirável poder de sedução. Medem-se entre si pelo carisma, pela alegria que têm. Como, aliás, era para ser. Não é do ser a essência a única métrica confiável? Os anõezinhos dão prova: identidade, sim, é documento!

quinta-feira, 30 de julho de 2009

A Hora de Voltar


- Por Roberta Mendes

Tão permeável estava meu coração ao título desse filme, quando o vi, como se por dentro também o relógio secreto da felicidade, após completar diversos ciclos sobre seus complexos mecanismos de tempo, tivesse feito ecoar sonoramente o alarme da vida, convocando ao despertar. Emoções sutis, inusitado prazer das pequenas coisas, tudo acordado em mim, por esse maravilhoso senso de oportunidade que tem a vida, de vez em quando, de fazer coincidir os acontecimentos com a nossa máxima capacidade de fruí-los, milagre de sincronia entre a maturidade do fruto e a da fome, que, nesse estágio, tapreciação se torna. Essa maturidade (e não esqueçamos, estar maduros é estar prontos!) que é como uma nudez, um modo de crescer ao contrário, perdendo a casca em direção ao caroço das coisas, despojando-se.

Despojando-se de suas experiências tristes, dos temores adquiridos, do ceticismo cuidadosamente cultivado e outros tantos mecanismos de defesa. Assim era o instante de graça em que assisti ao filme, como uma volta, ainda que pontual, ao estado de pureza. Não digo à infância, que infância seria não ter ainda vivenciado coisa alguma. Dá-se que, por vezes, da bagagem emocional abole-se todo o peso e, assim, libertos de gravidade, jogamo-nos à vida alta e profundamente.


No entanto, mesmo a magia se rege por um imperativo irrecusável de tempestividade e tem sua hora, momento preciso de acontecer. Para que entendesses o encantamento do filme, o que ele parecia querer dizer de nós, era preciso que soubesses voltar também. Voltar ao dia em que nos conhecemos e ao modo maciço de sentir daquele dia. Era preciso que te batesse no peito o mesmo, desarmado coração de quem não queria ir embora, sobre o qual descansei o meu sorriso. Então entenderias que a Hora de Voltar era, naquele instante, uma exortação para seguirmos, chamado do desconhecido, passo na escuridão, mãos dadas, salto do anjo em direção à vertigem de sentir.

Mas a hora passou, soterrada pela realidade de ampulheta dos dias que se seguiram. E, agora, já não entenderias...

Ah, tu bem o sabes, encontros são portais, breve intersecção entre nosso mundo e o do outro. Às vezes, instados pelo mistério, transpomos o portal e entramos na outra vida. Ou hesitamos, quer por medo ou por espanto e, súbito, o portal se fecha, transparentemente, como um vidro. Assim, continuamos a nos ver através do vidro, mas já não podemos tocar a substância um do outro, nem nada mais será trocado entre nós, pois que nossos mundos se tornaram reciprocamente impermeáveis.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A Festa da Menina Morta


- Por Roberta Mendes


A sala de projeção era pequena e os poucos freqüentadores sentavam-se rarefeitos, guardando distâncias. Grupamentos, se os havia, eram de pares ou trios, respeitando sempre o hiato de cadeiras entre uns e outros. Apagadas as luzes, o filme começou sem rodeios, com a mesma urgência urinária do personagem que lhe inaugura a trama. E não haveria outra.


A história transcorre lentíssima, torturante, com o fito de nos aprisionar, a nós descolados e urbanos, na própria falta de perspectiva das vidas da comunidade protagonizada. Somos abduzidos para dentro de uma claustrofóbica ambiência, em que a mente, ao ameaçar expandir-se, bate com violência contra a resistência das coisas.


Tão estreita de sonhos, tão carente de transcendência, que a comunidade atribui à própria confirmação da morte o sentido de um milagre. E, assim, festejam a menina morta. Vale notar: não se trata de pessoa encontrada com vida. Não se trata de alguém que tenha escapado ao destino. Tampouco trata-se de uma criança dada como morta e magicamente “ressuscitada”. Todo o tempo o sabíamos, o título nos adverte: a festa é mesmo em torno da menina morta.


Não é a toa que assim o seja, pois a morte só é desfecho para o indivíduo. Para a comunidade, sobretudo se tão à margem, não só do rio, como das engrenagens históricas, a morte é um acontecimento. E talvez o único. Mata-se o porco com lentidão, para que dure mais a ação no tempo. Adia-se o enfarto em face da água que não lhe trazem, porque morrer desta desassistida maneira nem mesmo é acontecer.


Os prazeres, por serem tão poucos, tanto mais ensejam excessos. O álcool degenerado em “ismos”. A comida sebenta, revolvendo-se nas bocas debochadas. A promiscuidade e o incesto. Tudo feito no escuro. Não às escuras ou às escondidas, pois tal disfarce não se fazia necessário. Tudo se passa no escuro, mesmo. Os olhos acostumados a intuir sombras e desprezar contornos, como que fotometrados à insuficiência da lâmpada incandescente. A careta, se de dor ou de gozo, mal se divisa no escuro. E assim, condicionados ao escuro, ninguém parece mesmo dar falta da nitidez, seja das feições ou das sensações. Sobretudo, a do pensamento.


Tudo se dá em surtos, em transes, em convulsões, em macumbas presenciadas com letárgica conivência, pois todos sabem que se trata de gritar contra o vazio. É o que lhes resta. A vida lhes perpassa apenas como uma agitação dos sentidos, uma hiper-excitação do corpo à falta de metafísica.


Mas não é do homem sonhar sempre com a outra margem, mesmo que sua história o ancore pesadamente ao fundo turvo do rio? Porque não vão embora, meu Deus, se não haveria ali sequer polícia, a interceptar botes e frustrar fugas? O que os impede de deixar para trás uma tão miserável existência? Olham para o curso da água e não lhe enxergam caminho!


Há em torno daquela população ribeirinha uma cerca invisível, um campo de força tão forte, feito o halo da menina morta. Regidos pela autoridade das ausências, a quem não se pode recorrer pelo indulto da liberdade, aqueles habitantes estão presos. Presos aos olhos que os validam, de que não se podem afastar. É como se, subtraídos ao olhar do grupo, corressem o risco de uma (orgânica) des-integração. Mais do que o medo do desconhecido, assusta-os a possibilidade da própria condição de desconhecidos, por isso não ousam se enxergar além. Por isso, perseveram dóceis no que não presta.


Pensando bem, não são em nada diferentes de nós. E é por isso que, visceralmente, nos exasperam. Porque nos lembram que também ouvimos de coração trêmulo às crenças íntimas que antevêem dor. E seguimos de abatido ânimo, negando-nos à felicidade, por temor de contradizer as escrituras. Também nós nos confinamos na segurança dos lugares estreitos. E, mesmo sufocados, assistimos o filme até o fim.


Ficha Técnica:
Título Original: A Festa da Menina Morta
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 110 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2008
Estúdio: Bananeira Filmes
Distribuição: Imovision
Direção: Matheus Nachtergaele
Roteiro: Matheus Nachtergaele e Hilton Lacerda
Produção: Vania Catani
Fotografia: Lula Carvalho
Direção de Arte: Renata Pinheiro
Elenco: Daniel de Oliveira; Juliano Cazarré; Jackson Antunes; Cássia Kiss; Dira Paes

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Ainda sobre as bandeirinhas

Não posso deixar de me manifestar hoje quanto às bandeiras que desfilam por aqui! Está lindo!
Resisto comentar-lhes a presença já que não nos presenteiam a nós com seus comentários... como podem prezados, deixar carentes de seus pareceres tão preciosos essas blogueiras ávidas e curiosas, como podem queridos não entrar na ciranda dos recados???
Hoje vejo que passam por aqui (de lá) a Espanha e a França, queridas! Temos ainda (daqui) novidades de Petrópolis e nossa amiga São Paulo, ambos generosamente dando o ar da sua graça também no "seja como for", obrigada!
Prezados e Prezadas, Senhores e Senhoras, o lado mais passional (dramático?!) deste blog vos apela, assim desta maneira escancarada, a dizerem se nos gostam :O) comentem queridos, cometam...
Um abraço,
Elis

domingo, 21 de junho de 2009

Pequena





- Eis Barbosa



Era uma pequena morena, de tez bronzeada pelo mesmo sol que tingira os índios seus avós, cabelos pretos escorriam pelos ombros até a cintura de desenho ainda raso pela meninice. Os olhos, como das amigas-irmãs que viria a conhecer em seus dias de mulher, eram grandes e curiosos. Crescia em torno daquele par de amêndoas cor de ônix, que lhe concedia olhar ora doce, ora triste, mas sempre atento.


Cria da terra, imiscuía-se à natureza como parte dela, esticando o corpo no chão fresco para contemplar o céu, solta, cheia de mato nos cabelos emaranhados.


Passava o tempo a pensar, a criar histórias na sua cabeça de doida! E cansava, mudava de posição, estirando-se agora de barriguinha para baixo, queixo sobre os braços cruzados, reparando no chão, que há muito no chão que se reparar.

Das brincadeiras, perguntar era a que fazia o tempo passar muito rápido e divertido. Tanta novidade, tanto acontecendo, o mundo havia começado sem ela e saber era preciso, por isso perguntava tudo, e sabendo do tudo que perguntava, queria saber de seus "porquês". Existiam tantas respostas que logo deu conta do que viria a ser seu tesouro mais precioso, seu brinquedo mais querido: perguntar, “por quê”?

Quanto mais “porquês” perguntasse mais respostas teria, portanto, esse brinquedo era infinito!

Infinito!

Descobrira o único “para sempre” que sua intuição feminina lhe indicava confiável. Tomou-o para si e desde então só sai acompanhada do pensamento!

Feliz, embora fosse sozinha de gente na cumplicidade que tecera consigo. Era menina como as outras, só um tantinho mais repreendida. Nunca acertava direito o vestido, gostava de andar descalçada, tiaras e elásticos de cabelo lhe davam uma dor de cabeça terrível, tinha casca de ferida (e nem ligava!), joelho muito ralado (achava linda a cor do mercúrio cromo!) vontade de chorar “à toa”, esquecia toda hora do inaceitável que era sentar-se como quisesse, que tinha de ter modos no falar, no caminhar, no gargalhar (um contra senso, no auge da alegria lhe chamavam a atenção!).

Ora, mas você não é uma mocinha? Era! Só não entendia o que isso tinha que ver com todo o resto. Mas tentava bem muito fazer como lhe pediam, e tentava fazer como as mocinhas, mas ficava-lhe sempre largo o gesto, e seu coração casmurro insistia sempre de que nada disso era a verdade do “por quê?” buscado sempre.


Nunca diziam que era linda, mas que certamente seria um “mulherão”, e que tinha de se cuidar, murchar a barriga, estufar o peito, ter postura. Assentia com a cabecinha esperta que só queria crescer para poder experimentar as coisas que os adultos descobriam, viajar sozinha, ler os livros que os adultos liam, e também para usar sapato de salto alto, porque o som que faziam nos filmes era coisa muito fina!

Cresceu, fez como queria e brinca muito ainda de perguntar de tudo e do por que de tudo. Encontrou aquelas amigas-irmãs (e uma amiga na própria irmã) ficando menos só. Mudou pouco do que era guardando ainda certo desajeito naquele proceder de mulher ideal que devia ser.

Tem as unhas sem polir, os pés pisando nus a terra, a gargalhada ecoante, exposta num sorriso cheio de dentes, vontade de chorar toda vez que encontra gente humana. Os olhos é que finalmente harmonizaram com seu tamanho, mas ainda não sabe bem se é como deveria ser e de vez em quando acha bem bonito aquele ar distante que têm as outras mulheres.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Bandeiras


Quem serão as pessoas por trás das bandeirinhas? Tu, de Lisboa, que não deixaste o nome? O amigo da Noruega, que passeia, vez por outra, por nossas palavras-vitrines, sem, talvez, sequer demorar-se, mas por tempo suficiente para em nós fincar sua significativa bandeira? O leitor, de solidão tão vizinha, em Duque de Caxias, fazendo companhia a nossas palavras-sonhos, como quem tece meias, velando um sono de criança febril? Quem pôs em nossa geografia íntima a insígnia de Espanha? Quem hasteia em nosso brinquedo de contar a flâmula graciosa da Grécia?

Dizem que assim se deu o primeiro contato entre o colonizador e o aborígene, estes dois representantes de universos tão para o outro desconhecido: o português presenteou ao índio com um espelho, o qual, por sua vez, prendou ao homem branco com a floração espontânea de um sorriso. E, assim mesmo, sem palavras, estes seres singularíssimos se comunicaram e conjugaram um precário “nós” pelo breve instante em que habitaram a mesma cena.

...Às vezes, também bem gostaríamos de interagir com o espelho que nos reflete: que imagem terão de nós? Ou encontrarão, por vezes, vocês em nós, palavras-espelho em que ver refletida uma emoção própria?

Sejam todos bem-vindos ao blog, como bem-vindos são quaisquer comentários, mensagens de náufrago para náufrago, que nos sinalize que, sim, há comunicação possível entre ilhas de existir.

Um forte abraço da
Roberta Mendes

domingo, 14 de junho de 2009

Do Medo ao Público - Diálogo com Paulinho Moska


De: Roberta Mendes
Para: fale@paulinhomoska.com.br
Data: 26 de junho de 2007 21:11
Assunto: Intempestivo

Estava na Modern Sound para comprar um cd de pífano que tinha sido lançado lá. Havia um intenso movimento de pessoas e restrições na entrada. Perguntei a um funcionário sobre o cd, recebi uma comanda destas para anotação de consumo e fui autorizada a entrar.

Dentro em pouco, as luzes diminuíram, as bancadas de cds deram lugar a improvisadas mesas e o ambiente inteiro adotou ares de expectativa. Esperavam você.

E eu, que, até então, nada esperara, fui-me deixando ficar, presenteada pela gratuidade de encantos da noite, essa antiga namorada. Assisti você de um ângulo roubado ao corrimão de uma escada. Eu, anônima. Você, público. Eu, público. Você, autor. Incorporei o intimismo do show e me pus a abrir parênteses em suas fotografias-canções. Fazia mesmo tempo que não escrevia “poemas de guardanapo”, instantâneos...

Quando o show acabou e as pessoas se dispersaram, tive ímpetos de ir até você, que estava próximo, e arriscar a ser o rosto do que, para você, não fora mais que uma impressão de azul no canto do olho. Te estenderia o guardanapo e sairia, um tanto intempestivamente, sem bem entender o que eu mesma pretendia com aquele gesto. Mas a auto-censura, esta, sempre pontual, deteve-me. Que pena! E colocou o guardanapo bem no fundo da bolsa, como se fosse para torná-lo, assim, simbolicamente inacessível, como uma parte de mim - a medrosa -, talvez, intimamente, te supunha.

Mas como o show e as reflexões incidentais não me abandonassem após mais de duas semanas, eis que veio à tona o bilhete em garrafa de náufrago que eu, ainda mais intempestivamente, te entrego. Obrigada, Móbile, por ter mexido no fundo de algumas coisas e provocado, assim, o movimento de trazê-las à tona.

Eis a minha singela “message in a napkin”:

Mas eu só sabia ser público
e não estar na frente ou à frente
de nada ou de ninguém. O olho anônimo,
como a câmera dos espiões,
escondidas em cavidades insuspeitas.
Sem brilho e sem flash: fotografo.
Vejo o palco por um recorte de corrimão.
Estou inundada de impressões e escrevo.
A mesa - um tablado árido,
com cadeiras em volta que não a assistem.
Palavras sem máscaras não são
personagens, nem levam pintura
a justificar a solidão do camarim. Estou despida
e não me mostro e não me faço ver.
Os outros trazem roupas nos olhos...
Ah, como é refratário
esse metal com que nos olham: armaduras.
O que lhes lanço não lhes atravessa. E o que recolho,
quando me recolho,
público, olho que apenas olha.
O autoral em mim não é público!
Mosca capturada pela beleza transparente de uma teia...
A arte não é libertadora, sabia?

- Roberta Mendes

------------------------------------------------------------------------------------

De: Webmoska
Para: Roberta Mendes
Data: 28 de junho de 2007 16:19
Assunto: Re: Intempestivo

Roberta,

Que bom que você me enviou sua "message in a napkin".

Certamente seu poema ficou com um sentido delicioso pra mim depois de eu saber da situação que te levou a escrevê-lo. O acaso nos traz as melhores sensações, não é mesmo? Sempre que estou no palco penso nas histórias que estão por trás do "público"...

Sim, eu também sou público e assisto shows maravilhosos que a platéia me dá. Obrigado pelo seu show, então. Seu olhar certamente me fez bem naquela noite e assim pude olhar para frente e para dentro com felicidade.

Beijo

P Moska
----------------------------------------------------------------------------------------

De: Roberta Mendes
Para: Webmoska
Data: 29 de junho de 2007 18:47
Assunto: Re: RE: Intempestivo

Dos grandes insights que tive ao longo do seu show, um dizia respeito à questão da exposição ao público, que creio seja a mais difícil provação para qualquer pessoa que se proponha a uma manifestação artística. Há, inclusive, os que acreditam que a manifestação artística só se completa - ai de mim – quando atinge o público, interlocutor coletivo de toda arte.

Se assim for, escritores de gaveta, como eu, nem mesmo chegam a ser escritores. Afinal, escritor é aquele que escreve ou que é lido? Pelo menos, já me incomoda a hesitação que continua paralisando meu passo em direção a tornar públicas as coisas que escrevo. Como diria Vinícius, em seu inquietante "O Haver":

"Resta (...)
Essa terrível coragem diante do grande medo, E ESSE MEDO
INFANTIL DE TER PEQUENAS CORAGENS."
Bjs,
- Roberta Mendes

sábado, 13 de junho de 2009

Lembrando o Crato...

Por Roberta Mendes


À época, morávamos no interior, que, pensando bem, era uma forma de morar por dentro, na origem mesma das coisas. Ali, onde a fronteira era um rabisco aleatório de criança e o sotaque cearense se pernambucolizava, esquecido das rixas entre as orgulhosas capitais.

Dali do interior, as capitais mais pareciam periferias, em que a brasilidade se rarefazia no redemoinho globalizante. Mas não ali! O país chegava-nos sem intermediários, sem filtros, deitando-nos raízes, em ligação direta com a terra - donde me vem, ainda hoje, uma sede de barro esturricado e o risco de me encharcar em demasia à mínima exposição a qualquer emoção mais úmida.

Morávamos lá onde se forjavam os modos genuínos da pátria, onde se cunhavam, em suassunas vivências, arquétipos do povo nordestino, este povo dotado de uma tão intrínseca teatralidade, que se presta , bobo da corte incumbido da gargalhada nacional, à caricaturização catártica da própria alma brasileira. Estava mesmo tudo lá, no microcosmo da cidadezinha: a pura raça mestiça. Durando. Negando-se à extinção.

E havia o folclore, não como um verbete esquecido na enciclopédia. Tocava-se-lhe o significado! Estava na rua, vivo, em danças multicores, empoeiradas de caminho. As bandas de pífano, os baques de tambores cabaçais, os irmãos Aniceto, meu Deus! Ali, bem no pátio da escola!

Só de ouvir o tilintar de um triângulo e um couro vergastado de zabumba, saíamos da sala aos pinotes, sapateando cocos, falanges transidas - obedientes ao ritmo como os ratos ao flautista de Hamelin. Apropriávamo-nos da cultura, em rodopios de ciranda e batuques de mineiros-paus. Era nossa! Ai, era tão nossa a memória do povo!

Certa feita, por exemplo, os professores encarregaram cada turma de aprender um ritmo para apresentar na reunião de pais. À minha classe tocou o número da caninha-verde, que dancei, a princípio, encabulada, descabendo no meu tamanho, menina tão grande entre os demais. Depois, fui pegando gosto pelo folguedo, acometida de requebros, até escorrer-me o rastro ocre do papel crepom pelo tronco das pernas. Da manifestação secular, de que muitos talvez jamais tenham ouvido falar, restou-me a vívida sensação de ter-lhe emprestado corpo. E ninguém lava de mim o borrão alegre dessa lembrança, tal como avistar de longe o verde vale ao fim da estrada seca, bem fosse o oásis do sertão como, aliás, lhe chamavam.

A cidadezinha incrustada no sopé da chapada, parecia um rebento, eternamente nascendo de um ventre gravídico de montanhas, respirando sobre nós sua aragem fresca. Eu aspirava os polens fundamente, congestionando os brônquios ignorantes de florescer. Passava julhos asmáticos, o peito temporão piando-me alto pela casa, como se levasse uma avezinha desamparada dentro.

A mãe afligia-se, valei-nos padim pade Ciço!, e me dava beberagens, aprendidas da sabedoria local, condimentadas de exóticos, regionalíssimos sabores. Pois, se é certo que todo antídoto se faz do respectivo veneno, era preciso, para eu me curar das flores do Crato, instilá-lo, gota a gota, na circulação teimosa do sangue, até eu transpirar, em vapores febricitantes, a garapa nauseante de pequis e mel de jandaíra.

Note-se que o exotismo dos sabores se transmitia ao próprio nome das coisas. Ali, a língua inventava estranhos modos de dizer, ressuscitando palavras mortas, improvisando corruptelas, em tão espantosa sintaxe, que o sentido dos ditos não se gastava jamais. Ainda que as histórias cismassem em se repetir...

E não é só que se recontassem os causos, pilando reminiscências. Era o roteiro mesmo das vidas que se reprisava, tomando-se cuidado para trocar o nome dos personagens, a fim de, ao menos, assegurar as novidades...

Era a outra face do cara-ou-coroa da tradição: os rapazes sonhando estudos na cidade grande; as moças suspirando pelo casamento. E como a impaciência é natural da adolescência, criou-se a moda de as moças, aos quinze anos, fugirem desarvoradas, precipitando votos de matrimônio em dramáticas fugas contra oposição nenhuma. Fiéis ao texto, os pais encenavam grandes zangas; mediam forças com os genros ingratos, deixando de falar-lhes e de prover-lhes – esses dois temíveis castigos - para depois desfilarem os netos, satisfeitos, nos bailes do Tênis Clube.

A transgressão era, então, cumprir o destino, apenas mais cedo do que recomendavam os costumes. Depois, os moços fujões se enfastiavam, como se os tivesse a bravata eximido de ousar outra, aventureira existência. As mães bordavam-lhes, queixosas, pesados enxovais, enxovais-âncoras, que os mantinham para sempre ao alcance da asa protetora.

Como podia um lugar de infância tão vasta, ser tão estreito para a juventude?

Talvez por isso, quando nos mudamos, eu intuísse pela conta dos anos, que partia mesmo em oportuna hora. Mais do que saudade, eu levava uma imensa gratidão pelo colorido das memórias e um mal disfarçado entusiasmo pelo tempo-espaço por vir. E vieram outros brasis. E, mais além, alemanhas, descortinando europas, geografias do longe.

Ficou-me, no entanto, a bússola do ser, pelo magnetismo dos afetos, tendendo sempre a leste, apontando a Nordeste – norte primeiro da velha alma retirante. Por isso, tudo que vem de lá reverbera em mim antigas notas de pertencer. Abrasileira-me. Atiça em mim a brasa do amor à pátria.

Feito no dia em que me prostrei nordesterrada ao reconhecer, sem mais nem menos, um assovio entoando a Asa Branca! Meu coração se agalopou do susto. Corri em direção à janela. Lá fora fazia Hannover, ainda. Mas dentro de mim era Crato. Êita saudade de casa! Minha garganta travou, ameaçando chorar. E o país em peso se pôs a cantar em mim!

segunda-feira, 1 de junho de 2009

A Primazia do Real


Haveria outra forma de despedida possível que não fosse o rompante rasgado à tesoura sem corte de um adeus dito à força do amor negado?

E quando do reencontro compulsório notou a presença dele pelo cheiro que impregnava o corredor, corrompendo-o. Farejava o outro sem o querer e, de novo sem querer, notou que havia deixado de roer as unhas!!! Pasma, chocada, quase ofendida, olhou-o mais, reparando agora por querer, e foi sacudida por dentro, dos pés à cabeça, quando da confirmação: ele havia deixado de roer as unhas!

Esbofeteada por aquele dado de realidade que lhe invadiam as retinas míopes, arregalou os olhos e deu conta de que não reconhecia aquelas mãos. Discretamente passou a perscrutar-lhe o rosto, voltando em seguida para as mãos, e constatou que lá estavam duas informações incoerentes. Mas quando foi que isso aconteceu? Como?

A ausência de narrativa para aquela mudança factual surgia, vestido escuro, olhar austero, entregando em mãos a evidência de que nada mais era como havia sido e que, dito isso (com os verbos conjugados tão somente no passado!), talvez fosse já tempo de assumir o presente, cuja leitura só poderia ser feita a partir... de quê?

Diante de todas as formulações que a olhavam nos olhos, decretava instaurada a confusão! Deixava o corpo presente naquele espaço físico retirando-se imediatamente para as profundezas no intuito de consolar a pequena desavisada que morava dentro de si. Era agora tudo muito confuso... as águas silentes do lago haviam sido perturbadas, e de claras passaram a turvas e nada mais se via!

Serpenteava por toda ela a nítida sensação de que algo estava errado, não era para ser assim, era para ser eu, era o que eu queria! Mas se assim o fosse, de verdade, o fim teria sido adiado até não mais poder... contudo precipitou-se o fim diante da impossibilidade de se viver em paz! Precipitou-se mesmo ou já era chegada a hora?

Um sem número de “não sei” desfilavam, ditos nas mais várias entonações... e quando sentiu a iminência de desmoronar a contenção que impedia, até então, as lágrimas de salgar-lhe a boca, correu a buscar socorro em uma das extensões mais ternas de sua alma! Essa mesma que havia cunhado para a vida a expressão “extensão da alma” como sinônimo de amiga!

Narrou entre lágrimas tudo, e quando finalmente chegou ao ponto cego da questão, “talvez fosse já tempo de assumir o presente, cuja leitura só poderia ser feita a partir... “ salvou-lhe a amiga completando a sentença: a partir da PRIMAZIA DO REAL.

Repetiu em voz alta, PRIMAZIA DO REAL.

Perplexa, todos os pensamentos e sentimentos que dançavam loucamente por sobre a razão congelaram, e se viu diante de toda a sentença, agora completa: talvez fosse já tempo de assumir o presente, cuja leitura só poderia ser feita a partir da primazia do real!

Significando dizer que era preciso, mais uma vez, deixar a fantasia e agarrar-se à realidade, tal qual se havia apresentado quando do fim: obscenamente nua, ostentando o entendimento impossível, o amor irrecuperavelmente transformado em outra coisa, a discrepância entre o que se desejava e a vida que se levava...

Lembra amiga, lembra? Lembra como era? Lembra do que você já não queria mais?

Lembro... sim, eu me lembro! Tonta ainda que estava acalmou-se. O equilíbrio seria restabelecido, erigiu-se um ponto de apoio sobre o qual levantou-se e, agora de pé, pode vislumbrar melhor outras possibilidades.
Elis Barbosa

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Remexendo Gavetas - Texto escrito em 2003


Por Roberta Mendes

Ainda ontem a solidão era confortável, como estar bem aquecido num dia frio - agasalhado de si mesmo. E, mesmo agora, não era ruim. Era mais como ter ouvido música o dia inteiro e já não distinguir cada canção em sua singularidade - calos da sensibilidade, exposta longo tempo a si mesma. Gato que, brincando com a própria cauda, se desinteressasse, de repente, e olhasse em torno, buscando algo fora e além de si, que sirva de presa para sua curiosidade inata de caçador. Algo para seguir ou perseguir. E quem diria que o gato, ao perseguir, está fugindo de si mesmo e de seu tédio imenso.



Para não interromper a metáfora, saí de casa, esgueirando-me felinamente pelas ruas, atravessando-as rápido, sem me fiar em outro sinal que não o rosnar dos motores. Pena era não poder galgar aos saltos os telhados de Santa Teresa... Fui modestamente às compras: era, de novo, humana. Tanto mais por haver filas e movimento de feira na praça e o rebanho de gente, obediente e disperso, que isso de obedecer a um fluxo sem nele pôr reparo não é qualquer paradoxo em se falando de rebanhos, sobretudo deste gado estranho, feito de gente enfileirada numa sábado de manhã.

Um senhor, já bem idoso, riu-se do meu mau jeito para destacar a sacola de plástico em que vão os legumes para a devida pesagem e mostrou-me, com mãos desapressadas, a destreza do gesto banal, com grande orgulho, como se ensinasse uma criança a amarrar os cadarços, encontrando, enfim, a utilidade de um gesto repetido ao automatismo ao longo de tantas feiras. Pois se muitas coisas só ganham sentido se as compartilhamos... suspirei, ao esbarrar com a consciência de que morava só, o que talvez explicasse a minha lembrança, um tanto descabida, de comprar uma nova lâmpada para a sala, se é que não se possa atribuir alguma carga simbólica a essa urgência por mais claridade.

Seria uma luz branca! - pois a que tinha era amarelada e jorrava sobre tudo sua insuficiência resignada. Mais parecia que se encolhia de timidez, com medo de revelar os cantos da sala. Não que essa sensação de penumbra me incomodasse, a mim que costumava chegar em casa do colégio apagando as luzes para acender o pôr-de-sol nas paredes do escritório da (já remota) casa paterna.

O fato é que comprei a lâmpada e cheguei em casa com meu pequeno projeto de trocá-la, experimentá-la, experimentar sua nova claridade branca sobre tudo. Em cima da mesa, registro desligado, por um zelo excessivo de mãe que continua ecoando dentro da gente, senti eu também orgulho do banal. Eu, que até poucos anos ouvia a voz altiva da minha mãe a prover todas as necessidades da casa, dando ordens aos empregados, liguei o registro, depois o interruptor e fiquei olhando para o pequeno milagre de claridade que eu mesma providenciara.

Essa palavra “providenciar” tem não sei quê de senhorio e força, poder de movimentar ou de bastar-se. Fiquei assim, plena, plena por umas horas mais, preenchendo sem esforço a casa e a solidão. Soberana. Faça-se a Luz! E lia, sob uma luz toda branca, o livro de Clarice Lispector. Faça-se o som! E a voz quente do Dave Matthews se espalhava pelos cômodos, preenchendo-os, sim, preenchendo tudo, que nem ter-se tornado audível um pensamento meu.

Pus a máquina para bater roupa, só para ter o cheiro de amaciante, feito exalado da memória de eu ter um lar e ser parte de uma família. Cerquei-me dos meus sentidos. Até que perdessem a graça. Era a hora em que se começa a tentar descobrir o porquê das coisas que talvez não tenham porquê. A menos que lhes atribuamos um. E ainda bem que as coisas é que não nos cobram os porquês de as termos feito...


Também, é culpa da Clarice, que me inclina toda para o lado das subjetividades! O telefone tocou. Não estava esperando. Senti-me resgatada, embora não soubesse exatamente de quê. Abstraí a voz amiga da realidade de distância e telefone e era como se o meu interlocutor estivesse no quarto ao lado e sua proximidade me dispensasse de prestar atenção no que dizia. Porque a presença e o convívio muitas vezes são essa exuberância de prescindirmos de palavras. Quando desligamos é que me deu pena de não ter prestado mais atenção no que dissera, qual tentar lembrar a letra de uma música e pegar-me balbuciando o lá-rá-lá inútil de sua melodia.

E sem mais com o quê me ninar, fiquei tão de mim à toa! Sem sono e sem ocupação com que gastar as horas restantes do dia. Em torno, o silêncio, disfarçado de televisão. Por dentro, palavras, palavras tantas - ai, sina de comunicar que nos deixa aos sós tanto mais sós, embora aos que pertencem, mais pertencentes.

Bem poderia o telefone tocar novamente, pensei, suplicando / arrependendo-me. Tarde demais! Uma vez esperado, um telefone não toca jamais. Todo usuário o sabe, embora não se encontre sobre isto qualquer alerta, nem mesmo nas letras miúdas dos contratos.

E, assim, adquiria por força, um hábito novo de des-esperar.

domingo, 24 de maio de 2009

O Banheiro do Papa


O Banheiro do Papa
(ou O Pequeno Conto da América Latrina)



- Por Roberta Mendes

Tão precário é o saneamento da alma humana, a permitir o perigoso refluxo entre o sistema potável do sonho, onde vem beber a esperança, e a água, não raro salobra, da realidade.

O homem, a quem apenas a convenção justificaria chamar o chefe da família, não passa de um menino grande, pronto a alterar a vazão dos tais registros e inundar, com isso, a casa sob a correnteza irrefreável de uma idéia visionária. É talvez a parcela de culpa a que toca a própria inocência na destruição do homem...

Em vão a filha, mulher em botão, condenada à lucidez, professa no improvisado microfone a chegada das hordas saqueadoras, metáfora ao contrário do vazio devastador que se abateria sobre o vilarejo, empenhado inteirinho, casa por casa, pela hipoteca do milagre.

Mas quanto mais caro o prêmio, mais alta é a prestação. E àqueles a quem sempre, tudo faltou foi dado a conhecer a outra face da desolação: a desolação da abundância tornada em sobras; do chouriço apodrecendo à falta de apetite a que servir.


A multidão errática de servos, minguando à falta de senhores - valha-nos Deus!, Senhor de todos os milagres, porque o reino é sempre adiado e a única majestade possível é a do silêncio sobre a súplica inútil dos homens? E a isso chamai de bem-aventurança? Não veio a graça. Mesmo o sorriso demorou a acudir aos lábios.

E no banheiro do papa, terminado às pressas para socorrer urgência nenhuma, sumiu pelo ralo, numa longa descarga, o sonho de ter uma vida melhor. Sobrou a vida. Sem superlativos.


Filme: (El Baño Del Papa - Brasil/ França/ Uruguai, 2005)
Estrelando: César Troncoso, Virginia Ruíz, Virginia Méndez, Mario Silva.
Dirigido por: César Charlone, Enrique Fernández
Produzido por: Andrea Barata Ribeiro, Bel Berlinck, Serge Catoire, Fernando Meirelles, Elena Roux
Gênero: Drama
Tempo: O que dura uma esperança...
Distribuidora: Imovision

sábado, 23 de maio de 2009

GARÇONETE




Pois pensando em coisas várias fui acometida por cheiro de bolo, bolo fresco, feito em tarde de sexta-feira (mesmo sendo uma quinta!), bolo-formiga, com furo no meio e casca bem tostadinha, melada, em tarde de abril... bolo-de-casa-de-mãe, seria o nome desse bolo se fosse eu a nomear-lhe!


Plágio da idéia alheia, dirás! Qual nada! Receita anotada e aplicada sempre que me lembro, ou que sou lembrada, do filme GARÇONETE, despretensioso e delicado e triste e verdadeiro e feminino e curioso... Saio pois, desvairada, dando os nomes que me apetecem a tudo que gostaria de chamar por um nome meu.


Tortas, tortas de comer, tortas para dizer o que não podia estar contido em nenhum outro lugar que não em travessa quente... sentimentos postos à prova do fogo e transformados em delícia!


Tortas, as almas são tortas, não conheci nenhuma por mais reta que não pendesse hora para lá, hora para cá, submetida, enredada, seduzida, quem sabe em demasia, aos afetos que as vão amolecendo sob o calor do desejo! Como não dizer dos caminhos que nunca, em mapa nenhum aparecem lineares... somos todos tão cheios de curvas (rosquinhas de coco açucaradas), grutas (canudos recheados de doce de leite!), descampados (bom-bocado!), florestas (floresta-negra, chocolate meio-amargo que ao tocar a língua faz salivar com o ímpeto de seu gosto flagrante!), planícies irregulares (cocada!!!), profundezas misteriosas (café fresco fumegando!), tão cheios de delícias!


Muitas tortas carregando nomes que só quem as faz e quem as toma para si desejando compartilhar de seu nome o significado, sente-as desmanchar na língua, fazendo revirar os olhos e surgir um sorriso, dando quiçá num abraço. Pois eu igual quero ter um dia alguém que me abrace longamente com a única finalidade que um abraço deve ter, a de abraçar, a de deixar o abraçado ali, bem quentinho, envolvido, acolhido, saciado, feito como quando se toma chocolate quente em noite fria. Ah, que o chocolate é um capítulo à parte!


Humano o apetite, tortuosas as veredas, importa que ao fim da fornada teremos à mesa, nada mais nada menos, que a receita preparada!

Elis Barbosa

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Elegia Eletrônica

- Por Roberta Mendes

Deus sabe - aliás não apenas Deus, porque eu, orgulhosa de meu anacronismo, gostava de espalhar aos quatro ventos que jamais aderiria à era do computador. Não. Nada poderia substituir o manuscrito! A letra: o pergaminho de toda uma personalidade para um grafólogo. E para os mais leigos, porém não menos atentos observadores, o retrato de um estado de espírito. A letra trêmula dos suicidas, a caligrafia caprichada das namoradas em papéis de cartas coloridos. Há delas que chegam a fazer desenhos, florezinhas no rodapé, espirais, setas, arabescos, resquícios ancestrais, linguagem das cavernas, pois, como intuíam até mesmo nossos mais remotos antepassados, uma imagem vale por mil palavras.

E há a sensação de poder tocar a lembrança da mão em febril repouso naquele trecho da carta que se sabe de custosa formulação, a reticência, não da frase, mas do pensamento do remetente. A impaciência da palavra escrita com força, a tinta da caneta quase falhando, a ponta deixando apenas um rastro fundo de palavra, como uma boca que se armasse para um grito e, de súbito, emudecesse.

Para os escritores tinha o manuscrito ainda a função documental. Mais do que isso: testemunhal. Não de testemunha, mas de testemunho. O poema assim escrito e palpável é um marco irrefutável do encontro mágico com a inspiração. As imagens estão libertas, libertas do poeta para sempre. Ele, por sua vez, liberto da urgência de comunicar o que não sabe, mas que é a matéria mesma de seu pensamento e de sua percepção do mundo. Às vezes, o poeta volta ao poema, não para lê-lo ou repensar um verso. Volta, na verdade, ao objeto, ao branco enfim sobrepujado da página manuscrita, certificando-se, com a ponta cega dos dedos, o braile sutil da esferográfica, as cicatrizes suaves da silenciosa batalha.

Já o branco da página do computador é na verdade um buraco negro, em que a palavra, mesmo depois de escrita, pode sumir sem deixar vestígios, o que vem muito a calhar para a higiene dos rascunhos. A palavra já não é, então, irreparável. Alguém lembrará de dizer que borrachas desde há muito possibilitam emendas, correções, supressões. Mas a borracha deixa a lanhura da hesitação e do erro. A borracha não era como esse botãozinho de deletar, que permite que se volte sobre os próprios passos. A borracha assinalava o tropeço, o desvio. No computador, depois de revisados e corrigidos os erros por ele mesmo apontados (que agora já nao se limitam mais às revisoes ortogárficas, oferecendo também as gramaticais), parece que o texto já nasceu pronto, perfeito, irretocável.

Não só a possibilidade irrestrita de remissão dos erros, mas a agilidade de dedos que se desenvolve a partir do manuseio diário das teclas, tudo contribui para que não se reflita tanto, é dizer também que não se censure tanto o que se está a dizer. Está-se pensando uma coisa e lic lic lic (os teclados nao fazem tec tec tec como as suas precursoras máquinas de escrever), lá está a coisa escrita, para surpresa do próprio autor. Teriam as letras nascido do branco da tela? Quem nos traíu assim a vigilante consciência? Às vezes, o susto é tanto de ver escrito exatamente o que se pensou em dizer, que o autor superticioso não se atreve a apagá-lo, tomando-lhe por revelações de um oráculo virtual.

Todavia, o que verdadeiramente me converteu à escrita eletrônica foi a possibilidade de escrever no escuro. Sempre pensei - e acho que acontece com todo mundo - sempre pensei muito mais claramente no escuro. À noite, deitada na cama, mãos atrás da cabeça, o teto como uma página imensa, onde cabiam todas as palavras, todos os diálogos, todas as metáforas. E vinha aquela urgência de escrever, de registrar a lucidez desses sagrados delírios de insônia. Mas era só acender a luz para sentir incontinenti ofuscar-se a projeção desse filme interior, e já não se podia ver nem distinguir as imagens que me povoavam.

Por certo que já tinha tentado outras alternativas, como, por exemplo, ter sempre à mão um pequeno gravador e ir ditando o que dizia o pensamento. Esse método se mostrou falho, essencialmente por dois motivos: 1) pela artificialidade de ouvir a própria voz, sem ter interlocutor real a quem dirigir-me e, 2) porque esse pensar alto não permitia a concatenação seqüencial ótima, inerente às idéias escritas. Ainda assim, muito me serviu o gravador para mapear pistas de pensamentos. É que, se não cuidamos, perdem-se para sempre uns insights até aproveitáveis, sabe-se lá, se não eram a solução de todo o mistério.

Somente o computador me possibilitou a magia de escrever no escuro. Mais do que isso: a magia de ver a luz como que encrostada de letras, de ver cada letra como que brotando dessa mesma luz, consumando assim a ancestral metáfora da criação artística. O mundo todo apagado em volta. Só as idéias. Só as idéias acesas.

Isso sem mencionar a internet, a grande rede onde se cruzam os fios de tantos destinos, onde tantos se encontram, se desencontram, encantam-se com o novo, o vário, o mundo; iludem-se com o virtual e deixam-se brincar, por vezes, de traiçoeiros jogos de faz-de-conta. Os e-mails são cartas aladas, permitem respostas imediatas, diminuindo, por certo, em caráter absoluto, o tempo de espera, mas potencializando a carga ansiogênica da passagem dos segundos, somente redimida pelo messiânico alerta "you've got mail". Os chats, um pequenino milagre de simultaneidade, em que a distância não tem império. Alguns programas de bate-papo eletrônico chegam ao requinte da simultaneidade, que é ver o pensamento do outro se construindo letra a letra, palavra a palavra. Vê-se como o pensamento avança e recua, escreve, apaga, conserta o alicerce do raciocínio, seqüestra letras, permitindo, assim, ao interlocutor uma espécie de onisciência sobre a formação da linguagem do outro.

Ah, pianinho de letras, em oração ante às tuas sempre imprevistas panes, imploro: não dê sumiço às minhas palavras! Lança-me rede afora: pescaria ao inverso! Conta-me ao mundo! Impede que eu me apague!

A propósito de apagar, apago-te agora. Acendo o mundo em volta de mim, os móveis do quarto e sua concretude, e me arrumo diligente para dormir. Depois, restabeleço a penumbra e nela me enrosco e me anulo, decomposta de contornos e formas. Só as idéias. As idéias que não se apagam e, pensando bem, nem acendem. As idéias desde sempre acesas...

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Recomeço

A clarividência do fim das coisas, de todas as coisas, voltou a atingi-la com tanta força que fazia a lucidez rodopiar, louca, em êxtase! De novo essa história de fim? De novo. Sério? Sim, trata-se de assunto de primeira grandeza. Havia uma última vez para tudo que era, e os transeuntes pareciam ignorar que a roda seguia apenas o movimento da Terra, transformando incessantemente a matéria, fosse qual fosse sua natureza.

O sol de tarde, que era o melhor sol para os pensamentos de sanha, brilhava tímido entre nuvens gordas que escondiam seu mau humor no cinza dos vestidos apertados que lhe abotoavam até o pescoço, sufocando. Enquanto o pensamento – ...o fim das coisas, para tudo havia impreterivelmente uma última vez... – executava laboriosamente seus malabares dando muitas traduções para si mesmo, em diversas formas, diversas... possibilidades... eram suas obsessões: o fim das coisas e a existência das possibilidades.

Ironicamente, enquanto suava do esforço de tentar manter dentro de si o rebuliço que fazia a ciência nefasta do fim de tudo e do infinito de possibilidades entre o agora e seu ponto final, as nuvens de raiva, ante tanta magia pura pulsando naquela matéria vagabunda de poeta sem razão, choram, choram lágrimas grossíssimas, rosnam trovões e rasgam-se em raios, mortais nos descampados, rezando para acertar alguma mocinha bem-feita, que morra! Para não ser mais capaz de gozar, já que as nuvens tem por sina a ingrata missão de vagar desfazendo-se o tempo inteiro sem nunca poder tocar, senão por um leve, um levíssimo momento de caricia etérea.

Choviam, choviam copiosamente as nuvens, sem dar conta que acabavam era por representar o ciclo eterno da vida para morte para a vida, alimentando ainda com mais requinte o pensamento que se multiplicava em mil pensamentos naquela sala de espelhos que era sua mente.

Sorriu. A chuva... toda aquela água prenhe de vida, aguando para o bem ou para o mal, tratava de embalar o último ato do pensamento: não era para ser evitado o fim em nenhuma instância, não há que se ter susto com sua aproximação tão prenunciada... o fim está próximo... é claro que sim, pois sua marcha reta tem início bem no exato momento do começo das coisas! Fechou o guarda-chuva com cuidado, e seguiu seu caminho sentindo cada gota daquelas refrescar sua agitação. Prenhe ela também, carregava no baixo-ventre a sensibilidade de reconhecer as nuances das possibilidades que vêem com a perspectiva do fim das coisas, não mais com a mente ou com o coração, mas de corpo inteiro.
Elisangela Barbosa

sábado, 14 de março de 2009

Por Roberta Mendes

Era feliz. E agora o quê? Tal pensamento pareceu-lhe ter a imobilidade instável das cenas de certos filmes chineses, em que os personagens ficam suspensos por um átimo, medindo-se no espaço, antes de desferirem um golpe.

Sugestionada pela imagem, tentou antecipar o movimento de um seu possível adversário, se é certo que sempre há forças em oposição ao sonho que acalentamos. Ainda assim, sabia-se feliz. E inquietou-se. Intuiu com grande cansaço que tudo era fugidio. Sina dos mortais: temer a perda. Sem falar da preguiça de reconstruir-se, trabalho lentíssimo, a que sempre faltam pedaços...

E sem que nada, objetivamente, se alterasse em torno a ela, sentiu-se infinitamente miserável, a felicidade pulsando-lhe na palma da mão como o coração de um pássaro assustadiço, a que não é possível proteger para sempre. Por toda parte perpassava um agouro de predação.
...Ou foi só a lufada de vento que lhe enregelou a face?

sexta-feira, 13 de março de 2009

Sem Roteiro ou Direção: A Personagem


Por Roberta Mendes

- Corta!

Fosse ela o diretor, teria a cena se interrompido com naturalidade, os figurantes retomando docilmente suas posições iniciais, sem o olhar de estranheza que lhe lançou o rapaz, levantando-se para fazer soar o aviso sonoro de requisição da próxima parada (logo ela, que detestava atrair para si a mínima atenção).


A verdade é que também ela se surpreendera com a própria voz, mas, como a lágrima ainda insistisse em embaçar-lhe a visão, gemeu para si mesma, com o cuidado de ser inaudível: corta...!


A voz de comando se desfizera inteiramente, cedendo lugar a um tom quase de súplica. E se a lágrima ainda não rolara pesadamente pelo seu rosto era somente porque tinha cílios longos, o que aumentava em preciosos milímetros a distância que a separava (à lágrima) de seu desamparado salto para a protuberância das bochechas.

Antecipou-se à queda da lágrima, enxugando-a com a ponta implacável de um dedo, ao mesmo tempo em que se virou, sorrindo desconcertadamente para seu novo vizinho de assento, dizendo-lhe, como quem se justifica “imagine!”. Este, que estivera absorto, ouvindo música todo o tempo, pensou que tivesse chegado seu ponto, fez menção de levantar-se para lhe dar passagem. Ela, atrapalhando-se mais, apressando-se em esclarecer: “não, eu não...não foi nada”. E voltou-se rapidamente para a janela, recostando-se na cadeira com grande alívio, rindo-se um pouco de si mesma: achar que perceberiam... “Imagine!” - Disse já sem sobressalto, convencida de sua invisibilidade.


E se pôs a observar seus próprios pensamentos. Os quais, por se sentirem observados, adquiriram, instantaneamente, uma certa solenidade e ficaram organizados e limpos como o caderno de uma menina aplicada. Começou então a fazer listas, listas de muitas coisas:
- das pessoas que lhe foram mais importantes nos últimos anos;
- com quantas delas ainda mantinha contato;
- quais as pessoas com quem acha que ainda manteria contato nos próximos anos
- ...


E como a garganta se contraísse ante a uma lista e outra percebeu que ela ainda estava lá: a emoção. Mas por quê? Um dia tão comum...! E a palavra “comum” pensada assim, inadvertidamente, estreitou-lhe o estômago, quase precipitando-lhe novamente às lágrimas. Arre! Que campo minado são os sentimentos em dia de chuva, concluiu, recostando-se novamente no espaldar da poltrona, ajeitando as costas, como quem procura aconchego em atitude de clara cumplicidade para com sua, até então, inesperada sentimentalidade.

Paciência! – disse, então, soltando o ar pelo nariz. E o vizinho, que se organizava para deixar o coletivo, olhou-a de novo, de relance, com ar interrogativo, o que a fez afundar-se ainda mais em seu assento. Ah, o patético teatro da solidão nas grandes cidades! E abriu os braços (pateticamente) em desalento.


Não fosse o caminho tão longo...! E não sabia se falava efetivamente da distância ou se fizera involuntariamente uma metáfora. Não tinha mesmo jeito: estava significativa. E, veja só, justinho hoje não havia qualquer esperança de interlocução...! Talvez por isso as palavras lhe escapassem ao acaso, pontuando o diálogo interior, interpelando, involuntariamente, os passantes. Cada um com seu artifício...assumiu. E lembrou-se com amolecida ternura (quase mesmo piedade) da senhora dos gatos. Senhora dos Gatos! - experimentou a expressão, isolando-a do contexto. E, dita assim, mais parecia um título nobiliárquico, o que ainda mais aumentava sua piedade, ao lembrar-se da cena.

É que estava, certa vez, sentada nos degraus da escada que dá para a rua estreita e suja de seu trabalho. Aguardava o táxi (também naquela ocasião chovia) e ela havia se concedido o pequeno luxo burguês de aguardar o táxi vir buscá-la à porta (inóspita) do prédio (inóspito). Sentara-se no degrau e adquirira ares de planta decorativa (também ela temia ser interpelada pelos passantes...).

Dado o trânsito de pessoas que saiam do prédio sem cumprimentá-la, chegou mesmo a desconfiar que seu mimetismo, de tão perfeito, a fizera cinza como as paredes do prédio. Mas eis que viu o felino se aproximar com ar expectante, olhando com grande interesse para o hall de entrada, a patinha suspensa à frente (então também disfarçam os felinos?) como se a fosse lamber, mas desistisse. Chegou-se mais próximo à porta, cautelosamente. O corpo protegido ao longo do muro, apenas a cabeça em atitude curiosa, espreitando. E foi então que viu sair a...a... a Senhora dos Gatos, pois!

Trazia consigo uma bandejinha com ração, que - é preciso dizer - colocou com certa solenidade ritualística no outro lado da rua. O gato se aproximou da bandeja, não da mulher. Mas ela o olhava com desprendido encantamento, e lhe falava coisas carinhosas, a voz farpada de fumante aveludando-se com esforço.

Então voltou para o hall de entrada e deu instruções aos porteiros sobre como alimentar os gatos no fim de semana, deixando aos cuidados de um zelador um grande pacote de ração, mostrando-lhes a medida do que devia ser servido a cada dia, indicando com as mãos os pontos da rua em que a bandeja deveria ser colocada, afinal, em dias de chuva, tinha o bichano que driblar as poças d’água da rua de calçamento irregular.

Os outros passavam apressados. Despediam-se (se tanto) com um meneio de cabeça e sumiam na curva da esquina, com grande pressa...se a aula ou o amor, certo é que algo os esperava. Mas a Senhora dos Gatos não tinha pressa alguma. Acendera já o segundo cigarro. E era magra, como se tivesse tido o cuidado de se manter minimamente atraente, para caso o acaso de um caso...

...E lá estava ela de novo ‘personageando’ os circundantes, que mania! Que faria a Senhora quando se despedia dos gatos que lhe emprestavam o aposto? Moraria numa ruazinha transversal do Catete, prédio antigo, sem elevador? Imaginou-a subir cinco lances de escada, parando de quando em quando para puxar o ar, sofregamente. Pararia à porta de seu conjugado, bateria à porta antes de abri-la, algo assim como um ritual de si para si mesma, já que era certo que ninguém abriria. Talvez para dar tempo aos fantasmas de se esconderem... Não ficava bem irromper assim nos aposentos alheios...Mas se era dela a casa!!! Saberia a Senhora dos Gatos ser senhora também de sua casa?

A pergunta voltou-lhe no espelho como um bumerangue, despertando-lhe do transe. É que ela mesma já chegara em casa, levada sonambulamente pela esteira da digressão com a história da Senhora dos Gatos. Nem se dera conta... O marido estava fora, a negócios, de modo que, quando abrisse a porta, teria ela também uma casa inteira para ocupar com seu pouco corpo de muitos sentidos. Ah, que a música fizesse as vezes e fosse espantar as presenças invisíveis ou as ausências visíveis dos demais cômodos!

Sentada ao sofá, as luzes ainda apagadas, crescia. Crescia no prazer de estar só. Crescia-lhe o prazer de estar sendo. E, em silêncio, com a mão ao lado do colo, segurando o invisível cetro, reinava soberanamente sobre a solidão do apartamento, aguda e sólida como o rochedo do corte do Cantagalo.

- Corta!

quarta-feira, 4 de março de 2009

Germiniscências

- Por Roberta Mendes

Saiu da loja de perfumes, aproximando suavemente o pulso do nariz, para sentir-lhe a fragrância. A mão pendia-lhe oblíqua, com as costas voltadas para fora, como na pausa coreográfica de uma bailarina, revestindo de elegância o distraído gesto. Sim, havia qualquer coisa nela que dançava! Seu caminhar tinha a leveza volante de um invisível voil, vinham e iam as ancas em balanço pendular, cadenciadas.



Seria a mulher a rosa que se cheira? -brincou-lhe o pensamento a propósito da estampa floral que vestia. Tudo nela exalava um aroma frutado de flor fecunda, doce, doce, olhos dulcíssimos, rebrilhando úmidos como o vértice de um hibisco. Apertou o ventre com as mãos em concha, como a proteger um enigma e atravessou a rua, o sinal ainda aberto aos carros, em atitude desafiadora, só para vê-los curvarem-se sob o comando de uma súbita frenagem à altivez da vida.

Gostou da idéia de que as coisas em volta dela, a partir de então, desacelerassem. Havia mesmo mais silêncio, como quando cai a neve e suprime-se o barulho dos passos.

Deixou-se tomar pela visão íntima de uma paisagem toda branca, a que associava, paradoxalmente, um calor de Glühwein, bebido em pequenos goles - o vinho que se serve quente e condimentado nas festividades teutônicas do Advento. A evocação inebriante do cheiro macerado de cravo, uva e anis, levou-a a fechar os olhos, inalando gulosamente o ar até o limite dos pulmões, retendo um pouco a respiração, como a perscrutar vestígios das notas exóticas do aroma dentro de si.

Levada pela correnteza das associações sinestésicas, sintetizava em sinapses rápidas experiências diversas, sensoriais ou não, resultantes do intelecto.

E tinha ainda a sugestividade da palavra “Advento”, cujo conceito fulminara-lhe sob uma conotação inteiramente nova...

Os parênteses se abriam em sua mente com o poder de multiplicação de bonequinhas russas, as memórias saindo umas de dentro das outras, em uma infinita cadeia remissiva, um fio contínuo de histórias que era, no fim das contas, o que lhe arrematava a tessitura do ser.

Munia-se, inconscientemente, de referências, tantas quantas possíveis, sobre o processo de viver: suas sensações, suas razões, suas implicações, seu sentido.

Mais do que nunca precisava entrar em contato com a natureza das coisas, sistematizar o precário saber, como o pássaro laborioso a construir com fragmentos a dimensão imaterial do ninho, pois suspeitava estar incumbida de transmitir, mais do que a realidade do corpo, um modo de estar no mundo, de relacionar-se com ele.



...Os que julgam que a criação é forma apenas de forjar a criatura, desconhecem a carga transformadora do ato de criar, donde o próprio criador se origina. Origens...Origem. A palavra escancarou-se como a boca de uma baleia, tragando-a para dentro. (A lucidez nela aguçou as retinas, tentando recuperar a nitidez dos contornos ao adentrar o escuro mistério.)




As possibilidades, variáveis impossíveis de se controlar… controle, ilusão ingênua de que há razão para tudo que se passa por aqui. Não necessariamente, não precisamente, não. A única certeza que mantém sua credibilidade inabalável é a de que tudo muda o tempo todo... e há as virtudes, as doces virtudes que acabam por materializar, nem que seja no papel um diálogo possível entre o desejo e o que se coloca frente a ele.

Há que se ter coragem para deixar a alma olhar tranqüila através das janelas dos olhos, caso contrário, o entorno transforma-se em cenário pobre e tedioso de tanto que a alma está, o tempo todo aflita, olhando apenas pela fresta da janela e de soslaio!!!

Elisangela Batista Barbosa

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Encantada


Encantada, lia sem descolar do rosto o sorriso condescendente de quem sabe exatamente do que trata o outro naquelas linhas traçadas com capricho, o pensamento ainda garranchado cheio de sentimentos tumultuados. Era o texto como um quadro que todos desenhavam, mais hora menos hora, pintado com a descrição das primeiras descobertas, contendo as confusões de quem acaba de chegar, as desilusões primárias, os questionamentos do óbvio sempre presente, mas nunca dantes visto.

Trilhava ela o caminho proposto pela outra, parágrafo à parágrafo, sem respirar, sabendo que qualquer reação que tivesse seria tomada por sinal de algo, quando nada havia a assinalar a não ser o que já se desenhava ali. Então, o que achou? Piscava, os olhinhos pequenos e despertos.


Achava de dar-lhe um abraço forte de irmã para, quem sabe, passar para ela toda a força resignada de quem já gastou aquelas trilhas e se perdeu e andou em círculos e caiu e levantou e enfim seguiu adiante! A força renova-se como a fênix... mas ela ainda não sabia.

Achei bom, está ótimo! Tem certeza? Tenho, está bem escrito, claro e honesto. Isso sim, bem honesto mesmo, abri meu coração! E dizia assim com o punho cerrado sobre o peito. Sorriram, um sorriso sereno e amoroso e um tenso, de lábios apertados, respectivamente.

Você acha que eu devo mandar? Ora, mas não foi escrito justamente para ser lido? Sim. Então, já nem é mais seu querida, já é do outro. Você acha? Era como assistir aos primeiros passos... eram os primeiros passos! Acho, acho que deve mandar, como se estivesse a liberar um passarinho da gaiola.

Com essa imagem assim colocada os olhos dela marejaram, baixou a cabeça ruiva, cheia de cachos grossos e caraminholas. Dobrava o papel com gestos de mágico que faz desaparecer. Você já mandou cartas assim? Deus, foram tantas escritas e tão poucas enviadas, foram tão espremidas e extraviadas, algumas nunca respondidas, foram simplesmente ignoradas...Sim, já mandei cartas assim, claro, há vezes em que coisas ficam melhor colocadas no papel, sabe?

É, acho que sim. Mas não sei, mas vou mandar assim mesmo. Sorriu.

Um não saber infinito, uma ausência de fronteiras, de limites, uma constelação de sentimentos que experimentados com paixão rendiam era num outro Halley, rasgando seu céu, explodindo afinal em mil impressões e nenhuma certeza.
Elisangela Barbosa

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Aspirando zabumbas, tambores e triângulos, sentindo a brisa da terra que nos gerou e alimentou com sua poeira carregada de histórias que nos sacudiram o corpo e enxovalharam a alma, transportadas pelo som para nossas origens mais primitivas e viscerais trocamos:

De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Amiga, que coisa incrível! Estou bem aqui amando o cordel bem todinho ele… mas quando entra na música cinco e minhas raízes se sacodem, num manifesto de pertencimento, arregalo os olhos e procuro na palavra escrita uma explicação para tamanho rebuliço... quando descubro: é o momento do chamado dos santos africanos... ah, entendi!
De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Zabumba zunindo no colo de Deus… ai.... que tortura tudo isso dentro da imobilidade necessária neste lugar!
De: Flor do Crato
Para: Filha das Gerais
Assunto: Chamada dos Santos Africanos

Ontem era eu a dançante estátua, congelada em meus movimentos...a lágrima nem ousando molhar o chão seco, duplamente seco, porque infértil daqui... No Nordeste, pelo menos, o seco é latência. Aqui é suspensão (!)

De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
O que é o poeta Zé da Luz?! O que é o purtugûez correto dele???? MEU DEUS??? E esse é um brado louco querendo a liberdade!
De: Flor do Crato
Para: Filha da Gerais
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Vejo que te arrebatou!!! Que alívio...! Minha nordestinidade encontra ecos nas tuas geraes....!!
De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Ah se encontra, a terra ecoa em quem é de terra sem que o nome dela muito importe... essa apropriação do idioma me deixa feliz, me soa como galhofa amiga de quem é de casa, de quem é íntimo... me lembra vovô, que sempre que se surpreendia com algo dizia de rabo de olho, meio riso num canto da boca, mineiríssimamente: “mai eu vô ti falá contigo, ói”. No fim das contas acho que ele também era poeta.
E ele fecha a porta no fim, como quem tira de mim o brinquedo mais querido dessa hora…
De: Flor do Crato
Para: Filha das Gerais
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Ah, a liberdade de dizer as coisas do interior (e olha aí o trocadilho de novo!) se traduz numa quase reinvenção da língua! É outra iconografia, são outras imagens as evocadas, são outros nomes para as mesmas coisas. Nomes que não se gastam, pela sua incorruptível espontaneidade. São todos poetas, eu acho! Veja o velho Mané Preto, neto de escravos no Ceará, que morava numa fazenda chamada “Direitos” (ai ai...) e que disse, para meu deleite, quando perguntado do que mais gostara em Fortaleza, que tinha sido daquele portão que se abria “por natureza”!!! Isso nos põe imediatamente reconciliados com o automatismo dos mecanismos! Já não via os portões automáticos com os mesmos olhos e, sim, com o carinho do mistério que tinham tido para quem ainda tinha olhos de ver o milagre das coisas. Afinal, já alertava Drummond:
“As coisas, que tristes são as coisas consideradas sem ênfase!”

Adoro as hipérboles do meu povo, a ligação direta para com a carga dramática e cômica de tudo, a síntese dos contrastes, a capacidade do riso e do choro, do choro gargalhado, do riso chorado, a capacidade de ter o coração úmido e fecundo na terra esturricada! Meu povo é da linhagem dos cactus, sobre os quais se lê assim na enciclopédia:

“Seus caules expandiram-se em estruturas suculentas verdes perenes contendo a clorofila necessária para vida e crescimento (...)”
Mais do que defesa, o espinho é um disfarce para a coisa toda tenra de que, intimamente, consistimos... Nós, do elemento terra, nós, do barro de existir, nós com as raízes enterradas até a seiva oculta da vida!
De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Isso tudo lá no blog, planto eu ou planta tu? ;O)
De: Flor do Crato
Para: Filha das Gerais
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Plantações à parte, colheremos juntas e é isso que importa ;-)