quinta-feira, 28 de maio de 2009

Remexendo Gavetas - Texto escrito em 2003


Por Roberta Mendes

Ainda ontem a solidão era confortável, como estar bem aquecido num dia frio - agasalhado de si mesmo. E, mesmo agora, não era ruim. Era mais como ter ouvido música o dia inteiro e já não distinguir cada canção em sua singularidade - calos da sensibilidade, exposta longo tempo a si mesma. Gato que, brincando com a própria cauda, se desinteressasse, de repente, e olhasse em torno, buscando algo fora e além de si, que sirva de presa para sua curiosidade inata de caçador. Algo para seguir ou perseguir. E quem diria que o gato, ao perseguir, está fugindo de si mesmo e de seu tédio imenso.



Para não interromper a metáfora, saí de casa, esgueirando-me felinamente pelas ruas, atravessando-as rápido, sem me fiar em outro sinal que não o rosnar dos motores. Pena era não poder galgar aos saltos os telhados de Santa Teresa... Fui modestamente às compras: era, de novo, humana. Tanto mais por haver filas e movimento de feira na praça e o rebanho de gente, obediente e disperso, que isso de obedecer a um fluxo sem nele pôr reparo não é qualquer paradoxo em se falando de rebanhos, sobretudo deste gado estranho, feito de gente enfileirada numa sábado de manhã.

Um senhor, já bem idoso, riu-se do meu mau jeito para destacar a sacola de plástico em que vão os legumes para a devida pesagem e mostrou-me, com mãos desapressadas, a destreza do gesto banal, com grande orgulho, como se ensinasse uma criança a amarrar os cadarços, encontrando, enfim, a utilidade de um gesto repetido ao automatismo ao longo de tantas feiras. Pois se muitas coisas só ganham sentido se as compartilhamos... suspirei, ao esbarrar com a consciência de que morava só, o que talvez explicasse a minha lembrança, um tanto descabida, de comprar uma nova lâmpada para a sala, se é que não se possa atribuir alguma carga simbólica a essa urgência por mais claridade.

Seria uma luz branca! - pois a que tinha era amarelada e jorrava sobre tudo sua insuficiência resignada. Mais parecia que se encolhia de timidez, com medo de revelar os cantos da sala. Não que essa sensação de penumbra me incomodasse, a mim que costumava chegar em casa do colégio apagando as luzes para acender o pôr-de-sol nas paredes do escritório da (já remota) casa paterna.

O fato é que comprei a lâmpada e cheguei em casa com meu pequeno projeto de trocá-la, experimentá-la, experimentar sua nova claridade branca sobre tudo. Em cima da mesa, registro desligado, por um zelo excessivo de mãe que continua ecoando dentro da gente, senti eu também orgulho do banal. Eu, que até poucos anos ouvia a voz altiva da minha mãe a prover todas as necessidades da casa, dando ordens aos empregados, liguei o registro, depois o interruptor e fiquei olhando para o pequeno milagre de claridade que eu mesma providenciara.

Essa palavra “providenciar” tem não sei quê de senhorio e força, poder de movimentar ou de bastar-se. Fiquei assim, plena, plena por umas horas mais, preenchendo sem esforço a casa e a solidão. Soberana. Faça-se a Luz! E lia, sob uma luz toda branca, o livro de Clarice Lispector. Faça-se o som! E a voz quente do Dave Matthews se espalhava pelos cômodos, preenchendo-os, sim, preenchendo tudo, que nem ter-se tornado audível um pensamento meu.

Pus a máquina para bater roupa, só para ter o cheiro de amaciante, feito exalado da memória de eu ter um lar e ser parte de uma família. Cerquei-me dos meus sentidos. Até que perdessem a graça. Era a hora em que se começa a tentar descobrir o porquê das coisas que talvez não tenham porquê. A menos que lhes atribuamos um. E ainda bem que as coisas é que não nos cobram os porquês de as termos feito...


Também, é culpa da Clarice, que me inclina toda para o lado das subjetividades! O telefone tocou. Não estava esperando. Senti-me resgatada, embora não soubesse exatamente de quê. Abstraí a voz amiga da realidade de distância e telefone e era como se o meu interlocutor estivesse no quarto ao lado e sua proximidade me dispensasse de prestar atenção no que dizia. Porque a presença e o convívio muitas vezes são essa exuberância de prescindirmos de palavras. Quando desligamos é que me deu pena de não ter prestado mais atenção no que dissera, qual tentar lembrar a letra de uma música e pegar-me balbuciando o lá-rá-lá inútil de sua melodia.

E sem mais com o quê me ninar, fiquei tão de mim à toa! Sem sono e sem ocupação com que gastar as horas restantes do dia. Em torno, o silêncio, disfarçado de televisão. Por dentro, palavras, palavras tantas - ai, sina de comunicar que nos deixa aos sós tanto mais sós, embora aos que pertencem, mais pertencentes.

Bem poderia o telefone tocar novamente, pensei, suplicando / arrependendo-me. Tarde demais! Uma vez esperado, um telefone não toca jamais. Todo usuário o sabe, embora não se encontre sobre isto qualquer alerta, nem mesmo nas letras miúdas dos contratos.

E, assim, adquiria por força, um hábito novo de des-esperar.

domingo, 24 de maio de 2009

O Banheiro do Papa


O Banheiro do Papa
(ou O Pequeno Conto da América Latrina)



- Por Roberta Mendes

Tão precário é o saneamento da alma humana, a permitir o perigoso refluxo entre o sistema potável do sonho, onde vem beber a esperança, e a água, não raro salobra, da realidade.

O homem, a quem apenas a convenção justificaria chamar o chefe da família, não passa de um menino grande, pronto a alterar a vazão dos tais registros e inundar, com isso, a casa sob a correnteza irrefreável de uma idéia visionária. É talvez a parcela de culpa a que toca a própria inocência na destruição do homem...

Em vão a filha, mulher em botão, condenada à lucidez, professa no improvisado microfone a chegada das hordas saqueadoras, metáfora ao contrário do vazio devastador que se abateria sobre o vilarejo, empenhado inteirinho, casa por casa, pela hipoteca do milagre.

Mas quanto mais caro o prêmio, mais alta é a prestação. E àqueles a quem sempre, tudo faltou foi dado a conhecer a outra face da desolação: a desolação da abundância tornada em sobras; do chouriço apodrecendo à falta de apetite a que servir.


A multidão errática de servos, minguando à falta de senhores - valha-nos Deus!, Senhor de todos os milagres, porque o reino é sempre adiado e a única majestade possível é a do silêncio sobre a súplica inútil dos homens? E a isso chamai de bem-aventurança? Não veio a graça. Mesmo o sorriso demorou a acudir aos lábios.

E no banheiro do papa, terminado às pressas para socorrer urgência nenhuma, sumiu pelo ralo, numa longa descarga, o sonho de ter uma vida melhor. Sobrou a vida. Sem superlativos.


Filme: (El Baño Del Papa - Brasil/ França/ Uruguai, 2005)
Estrelando: César Troncoso, Virginia Ruíz, Virginia Méndez, Mario Silva.
Dirigido por: César Charlone, Enrique Fernández
Produzido por: Andrea Barata Ribeiro, Bel Berlinck, Serge Catoire, Fernando Meirelles, Elena Roux
Gênero: Drama
Tempo: O que dura uma esperança...
Distribuidora: Imovision

sábado, 23 de maio de 2009

GARÇONETE




Pois pensando em coisas várias fui acometida por cheiro de bolo, bolo fresco, feito em tarde de sexta-feira (mesmo sendo uma quinta!), bolo-formiga, com furo no meio e casca bem tostadinha, melada, em tarde de abril... bolo-de-casa-de-mãe, seria o nome desse bolo se fosse eu a nomear-lhe!


Plágio da idéia alheia, dirás! Qual nada! Receita anotada e aplicada sempre que me lembro, ou que sou lembrada, do filme GARÇONETE, despretensioso e delicado e triste e verdadeiro e feminino e curioso... Saio pois, desvairada, dando os nomes que me apetecem a tudo que gostaria de chamar por um nome meu.


Tortas, tortas de comer, tortas para dizer o que não podia estar contido em nenhum outro lugar que não em travessa quente... sentimentos postos à prova do fogo e transformados em delícia!


Tortas, as almas são tortas, não conheci nenhuma por mais reta que não pendesse hora para lá, hora para cá, submetida, enredada, seduzida, quem sabe em demasia, aos afetos que as vão amolecendo sob o calor do desejo! Como não dizer dos caminhos que nunca, em mapa nenhum aparecem lineares... somos todos tão cheios de curvas (rosquinhas de coco açucaradas), grutas (canudos recheados de doce de leite!), descampados (bom-bocado!), florestas (floresta-negra, chocolate meio-amargo que ao tocar a língua faz salivar com o ímpeto de seu gosto flagrante!), planícies irregulares (cocada!!!), profundezas misteriosas (café fresco fumegando!), tão cheios de delícias!


Muitas tortas carregando nomes que só quem as faz e quem as toma para si desejando compartilhar de seu nome o significado, sente-as desmanchar na língua, fazendo revirar os olhos e surgir um sorriso, dando quiçá num abraço. Pois eu igual quero ter um dia alguém que me abrace longamente com a única finalidade que um abraço deve ter, a de abraçar, a de deixar o abraçado ali, bem quentinho, envolvido, acolhido, saciado, feito como quando se toma chocolate quente em noite fria. Ah, que o chocolate é um capítulo à parte!


Humano o apetite, tortuosas as veredas, importa que ao fim da fornada teremos à mesa, nada mais nada menos, que a receita preparada!

Elis Barbosa

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Elegia Eletrônica

- Por Roberta Mendes

Deus sabe - aliás não apenas Deus, porque eu, orgulhosa de meu anacronismo, gostava de espalhar aos quatro ventos que jamais aderiria à era do computador. Não. Nada poderia substituir o manuscrito! A letra: o pergaminho de toda uma personalidade para um grafólogo. E para os mais leigos, porém não menos atentos observadores, o retrato de um estado de espírito. A letra trêmula dos suicidas, a caligrafia caprichada das namoradas em papéis de cartas coloridos. Há delas que chegam a fazer desenhos, florezinhas no rodapé, espirais, setas, arabescos, resquícios ancestrais, linguagem das cavernas, pois, como intuíam até mesmo nossos mais remotos antepassados, uma imagem vale por mil palavras.

E há a sensação de poder tocar a lembrança da mão em febril repouso naquele trecho da carta que se sabe de custosa formulação, a reticência, não da frase, mas do pensamento do remetente. A impaciência da palavra escrita com força, a tinta da caneta quase falhando, a ponta deixando apenas um rastro fundo de palavra, como uma boca que se armasse para um grito e, de súbito, emudecesse.

Para os escritores tinha o manuscrito ainda a função documental. Mais do que isso: testemunhal. Não de testemunha, mas de testemunho. O poema assim escrito e palpável é um marco irrefutável do encontro mágico com a inspiração. As imagens estão libertas, libertas do poeta para sempre. Ele, por sua vez, liberto da urgência de comunicar o que não sabe, mas que é a matéria mesma de seu pensamento e de sua percepção do mundo. Às vezes, o poeta volta ao poema, não para lê-lo ou repensar um verso. Volta, na verdade, ao objeto, ao branco enfim sobrepujado da página manuscrita, certificando-se, com a ponta cega dos dedos, o braile sutil da esferográfica, as cicatrizes suaves da silenciosa batalha.

Já o branco da página do computador é na verdade um buraco negro, em que a palavra, mesmo depois de escrita, pode sumir sem deixar vestígios, o que vem muito a calhar para a higiene dos rascunhos. A palavra já não é, então, irreparável. Alguém lembrará de dizer que borrachas desde há muito possibilitam emendas, correções, supressões. Mas a borracha deixa a lanhura da hesitação e do erro. A borracha não era como esse botãozinho de deletar, que permite que se volte sobre os próprios passos. A borracha assinalava o tropeço, o desvio. No computador, depois de revisados e corrigidos os erros por ele mesmo apontados (que agora já nao se limitam mais às revisoes ortogárficas, oferecendo também as gramaticais), parece que o texto já nasceu pronto, perfeito, irretocável.

Não só a possibilidade irrestrita de remissão dos erros, mas a agilidade de dedos que se desenvolve a partir do manuseio diário das teclas, tudo contribui para que não se reflita tanto, é dizer também que não se censure tanto o que se está a dizer. Está-se pensando uma coisa e lic lic lic (os teclados nao fazem tec tec tec como as suas precursoras máquinas de escrever), lá está a coisa escrita, para surpresa do próprio autor. Teriam as letras nascido do branco da tela? Quem nos traíu assim a vigilante consciência? Às vezes, o susto é tanto de ver escrito exatamente o que se pensou em dizer, que o autor superticioso não se atreve a apagá-lo, tomando-lhe por revelações de um oráculo virtual.

Todavia, o que verdadeiramente me converteu à escrita eletrônica foi a possibilidade de escrever no escuro. Sempre pensei - e acho que acontece com todo mundo - sempre pensei muito mais claramente no escuro. À noite, deitada na cama, mãos atrás da cabeça, o teto como uma página imensa, onde cabiam todas as palavras, todos os diálogos, todas as metáforas. E vinha aquela urgência de escrever, de registrar a lucidez desses sagrados delírios de insônia. Mas era só acender a luz para sentir incontinenti ofuscar-se a projeção desse filme interior, e já não se podia ver nem distinguir as imagens que me povoavam.

Por certo que já tinha tentado outras alternativas, como, por exemplo, ter sempre à mão um pequeno gravador e ir ditando o que dizia o pensamento. Esse método se mostrou falho, essencialmente por dois motivos: 1) pela artificialidade de ouvir a própria voz, sem ter interlocutor real a quem dirigir-me e, 2) porque esse pensar alto não permitia a concatenação seqüencial ótima, inerente às idéias escritas. Ainda assim, muito me serviu o gravador para mapear pistas de pensamentos. É que, se não cuidamos, perdem-se para sempre uns insights até aproveitáveis, sabe-se lá, se não eram a solução de todo o mistério.

Somente o computador me possibilitou a magia de escrever no escuro. Mais do que isso: a magia de ver a luz como que encrostada de letras, de ver cada letra como que brotando dessa mesma luz, consumando assim a ancestral metáfora da criação artística. O mundo todo apagado em volta. Só as idéias. Só as idéias acesas.

Isso sem mencionar a internet, a grande rede onde se cruzam os fios de tantos destinos, onde tantos se encontram, se desencontram, encantam-se com o novo, o vário, o mundo; iludem-se com o virtual e deixam-se brincar, por vezes, de traiçoeiros jogos de faz-de-conta. Os e-mails são cartas aladas, permitem respostas imediatas, diminuindo, por certo, em caráter absoluto, o tempo de espera, mas potencializando a carga ansiogênica da passagem dos segundos, somente redimida pelo messiânico alerta "you've got mail". Os chats, um pequenino milagre de simultaneidade, em que a distância não tem império. Alguns programas de bate-papo eletrônico chegam ao requinte da simultaneidade, que é ver o pensamento do outro se construindo letra a letra, palavra a palavra. Vê-se como o pensamento avança e recua, escreve, apaga, conserta o alicerce do raciocínio, seqüestra letras, permitindo, assim, ao interlocutor uma espécie de onisciência sobre a formação da linguagem do outro.

Ah, pianinho de letras, em oração ante às tuas sempre imprevistas panes, imploro: não dê sumiço às minhas palavras! Lança-me rede afora: pescaria ao inverso! Conta-me ao mundo! Impede que eu me apague!

A propósito de apagar, apago-te agora. Acendo o mundo em volta de mim, os móveis do quarto e sua concretude, e me arrumo diligente para dormir. Depois, restabeleço a penumbra e nela me enrosco e me anulo, decomposta de contornos e formas. Só as idéias. As idéias que não se apagam e, pensando bem, nem acendem. As idéias desde sempre acesas...