terça-feira, 27 de setembro de 2011

Germínea

- Por Elis Barbosa

Pessoa muito miúda, chegara fazia pouco, e andava achando tudo muito grande, muito forte, infinito. Pousara num lugar aprazível, bastante verde, cheio de outras vidas, bem natural. Cuidando havia uma moça jovem, quase tão criança quanto, muito linda e toda intensa. Como não havia tempo para se gastar à toa, logo chegariam outros para lhe acompanharem pela vida inteira, seriam mais miúdos ainda num primeiro momento. Isso de fazer parte de um grupo, assim, tão visceralmente, dava ao entorno uma estrutura de multidão que se pertencia, de trilha a ser construída, por onde se poderia fazer, só com o olhar, o trajeto de volta para o que chamavam casa.

Tudo parece incrível, não negaria, nem saberia fazê-lo, isso de negar-se viria depois, com as interferências corruptíveis do que chamam meio. Isso do meio como um lugar achava já bem interessante, de consistência flexível tem de um tudo lá dentro, sendo sempre possível escolher para onde, a partir dali, encaminhar as energias. Decerto não se podia descansar no meio, posto que ficava sempre movimentado com o vir a ser do que passava por ali.

As cores e texturas impressionavam sobremaneira, havia no quintal da casa uma grande extensão de terra sempre fresca, mesmo com o sol amarelíssimo estalando contra o pano azul claro estendido para o dia. Era vermelha de vários jeitos, e podia ser maciça ou arenosa, dependia do lugar cavado. Quando primeiro conheceu a terra teve um susto, era preta por cima e colorida por dentro (não há por baixo em se tratando de terra, como também não há por fora, tudo que mora aqui está, invariavelmente, ligado a ela, mesmo quando voam!), marcou a impressão dessa surpresa com o arquear das sobrancelhas escuras.

Tinha também a água, cujo sabor era diferente de tudo, especial, só dela. Podia ser ingerida fria ou fresca, se quente carecia de outros elementos flavorizantes que a transformassem em algo diferente, não seria mais água. A possibilidade de imersão nela gerava imenso prazer ao corpo, uma malemolência desperta, e a forte impressão de se ter estado ali antes. A água quente, caudalosamente escorrendo pelo corpo parecia abraço molhado, se fresca parecia algo que ainda não tinha nome, manifestado por um frio que subia da pelve para o estômago, mas não havia ali mistério ou surpresa, só prazer, a água tem um caráter muito transparente. Salvo quando juntada num monte, em buracos cavados por ela mesma na terra, aí sim pode ser que fique secreta como um baú translúcido, como quando se sabe do que se tem vontade, mas ainda não se está pronto pra dizer.

Quando o vento passa seus dedos pela superfície de águas assim gira lá dentro uma respiração presa, acendendo-lhe os sentidos, parece que vão falar e falam, mas o marulhar é uma língua desconhecida. Foi daí que começou a achar isso do vento das coisas mais misteriosa de todas que tinha sentido até então. O vento fazia todo mundo falar, as árvores grandes falavam pouco, e só se fortemente provocadas, o bambuzal dançava elegante, fácil, e os arbutos sempre assentiam. Jamais saberia do tanto de que falavam, mas que falavam isso era garantido.

Recheado, o mundo era recheado de coisas, e essas em sua maioria tinham nomes que aprendia com prazer igual ao de tomar achocolatado quente. Entre tantos nomes havia também o seu, sabia já que os nomes serviam ao propósito de chamarem a tudo quanto existe por palavras, que são sons com significados a gerar sentidos diversos, o tipo da coisa quase tão enigmática quanto o vento, deixando de alcançá-lo em liberdade por morar na boca das gentes. Isso o vento não admite.

A opulência de ter tudo assim, girando em torno de si naquela ciranda nem sempre divertida, requeria a maior atenção. Os sabores dos alimentos, por exemplo, foram a maior novidade, consumiram muita surpresa. Os cheiros das coisas correspondendo, via de regra, ao que a boca sentia. Bonito esse entendimento, o nariz apresenta e a boca cumprimenta experimentando, dissolvendo sólidos, geradoras de energia e prazer. Todavia, nem tudo é bom de comer, ficou sabendo logo, há coisas que não se pode chamar ruim, mas causam arrepios. Toda fruta é surpresa para sempre, pode tanto estar doce quanto azeda. Inconstância desse tamanho não era coisa fácil de entender, a mente miúda estranha antes de perguntar “por que?”.

Sendo assim, a preferência fica com os alimentos processados, temperados, quentes, de onde era possível tocar uma margem de certeza quanto ao sabor que esperar. Sabia também de onde vinham, como eram antes, como ficavam depois, tudo nascido das mãos macias, mornas da cozinha. Lá morava um fogo nascido em miniatura do fogão, força assustadoramente poderosa assim dominada causava estranhamento e fascinação. O vento é que jamais admitiria uma coisa dessas, o ventilador, por exemplo, tem esse nome de inveja de não conseguir ter o vento em si, nem movimentá-lo, faz no máximo um soprinho à toa com o ar que fica por ali, meio perdido sem o vento, mais nada.

O fogo do fogão é azul, enquanto o fogo das folhas secas é vermelho, notara encantada e entendeu que é desse jeito pelo fogo, mesmo dominado, não se render fácil, fica só menos lindo quando preso naquela boquinha apertada e feia que tem o fogão. Sorria e assentia de leve com a cabeça ao passar por qualquer fogueira, com o fogo se entendia e entretinha deslumbrada. Veja, o fogo além de quente e lindo tem som, modifica o que toca de modo absolutamente irremediável, para bem ou para mal, tornando necessárias as transformações. As outras grandezas também guardam o poder de vida e morte sobre os viventes, mas que só se pode ver diante de acontecimentos muito enormes, dos quais ainda não tinha conhecimento, o fogo não, sempre que aceso deixa claro a que veio.

Desde que chegara aprendia novidades, dentro da miudeza do corpo moravam duas forças complementares, a saciedade contente e a angústia latente, a segunda, em sua infinita curiosidade, sempre sacudindo a primeira. Tantas eram as coisas por se descobrir que mal podia dormir.