sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A visita

Por Roberta Mendes

Não um bairro qualquer, mas o Bairro de Fátima. O aposto não deixava dúvidas: era um bairro de mulher, em que pese a virilidade de suas escadas em ascensão, embora por estas, no mais das vezes, se descesse, pelo trote ágil de rijas coxas colegiais ou com passos desapressados, tardando moles nos degraus.

Os muros descascados pelas unhas dos amantes, crispadas de ciúme ou afoitas de prazer, davam à rua um ar mal-dormido e (de novo masculino) de barba por fazer. Por isso a morena alisava-lhes a textura áspera enquanto subia em direção ao prédio de poucos andares, por sestro de seduzir. Vinha falando e rindo, fazendo à amiga as devidas apresentações do cenário, do ambiente, colocando, como é de praxe nas amizades, legenda afetiva nas coisas: entravam em seus domínios.

Abriu a porta, saudando os gatos que a esperavam, roçando-lhe as pernas com o afetado desdém felino que ela, de si própria, conhecia bem. Por isso, indulgente e cúmplice, redobrava-lhes os afagos.

A casa era pequena e maciça. Seu aconchego lembrava o de um quarto bem cuidado de menina. Aliás, reconhecia-se, ainda, por sob a mulher independente, um orgulho senhoril da menininha anfitriã. O dedo em incansável atitude indicativa, apontando os cantos:

- ...E ali ficam os livros; aqui as fotografias..!

Havia em tudo a graça e o capricho de se parecer com sua dona. Mesmo as janelas, quando abertas: tão rentes às coisas, tão rente à vida!
O bairro entrava-lhe sala à dentro - este, aliás, um dos secretos méritos da anfitriã: o de ser ponte estendida entre as coisas de fora e as de dentro, para não falar, abertamente, do que é do espírito e do que é pagão.

A rua interagia com a intimidade dos cômodos, integrando-os, compondo-lhes a domesticidade aliciante ao estar-se descalço, desobrigado de modos, inteiramente à vontade.

Por vezes, as coisas rebelavam-se num complô anímico de ocultar-se justo quando as queria mostrar a anfitriã, só para revelaram-se depois, profeticamente enunciadas por uns versos de Drummond, pinçados a esmo da grossa antologia, por orquestrações do acaso - este grande roteirista!

Então aparecia o retrato de uma ausência, num recorte estourado de luz contra o escuro sem remissão. Assim se dava a conhecer o outro ilustre morador da casa.
Conviviam, a ausência e ela, em perfeita comunhão. Por isso ela não era só. E também por isso ela ficava só, indefinidamente, rosa carmim se oferecendo e se negando ao beijo predatório do escaravelho sob o tênue escudo, a farpa cega de um acúleo.

2 comentários:

  1. Poucas vezes fico sem palavras, dessa vez fiquei :O)!
    Mas ainda posso dizer, sabe a sensação de se estar nua? Pois é, me sinto posando para um belíssimo nu artístico!

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