sábado, 17 de janeiro de 2009

Anotações no Avião

Por Roberta Mendes

Dizem que, por volta dos cinco anos de idade, talvez por se dar o início de uma estruturação mais consciente da memória, a criança atribui a alguma coisa vista uma qualquer valoração fundamental, que a impelirá, por toda a vida, a tentar nela, de alguma forma, tomar parte.

Conheço alguém para quem essa visão foi o vôo colorido de uma asa delta, bisbilhotado do noticiário noturno, quando os pais julgavam que dormia. Aos trinta e poucos, o menino, finalmente, se “brevetava“ para o sonho.

Sei de outro que teria ouvido anunciar-se a Guerra pelo rádio, na voz solene do repórter Esso. Também este, anos mais tarde, foi locutor e, mesmo depois, quando seguia, por escolha própria, outra carreira, mais segura e conveniente que a primeira, era atormentado pelo desejo recorrente de voltar a atuar no rádio, obcecado pela fatídica fulguração dos cinco anos.

Quanto a mim, o objeto do meu primordial deslumbramento calhou de ser a palavra escrita.
Primeiro cobiçava a leitura dos adultos, aquele mundo paralelo para onde fugiam, sem, no entanto, deixarem de estar presentes. De que ririam? Pelo que suspiravam, afastando, às vezes, o rosto do livro com olhar ausente? De que sofriam, se os encontrávamos imediatamente refeitos uma vez cerrado o livro?

E tinha a máquina datilográfica do meu pai, em seu metralhar constante, entrecortado de precárias tréguas. (Mais tarde eu aprenderia que era, precisamente, nestes silêncios que se travavam as piores batalhas). Depois o pai retirava o papel pontilhado de tipos impressos, como o dos livros, lia-o algumas vezes, colocava-o num envelope e o enviava ao jornal. Desconfio que eram longas cartas de náufrago que lhe chegavam à superfície do jornalista nele submerso.

Antes mesmo de aprender a escrever, desenvolvi uma relação profunda e delicada com as palavras, manuseando-as com cuidado, buscando delas o sentido arredio, a compreensão exata. Que grande efeito exerciam sobre mim! A partir da alfabetização, não havia para mim melhor presente, fosse de Natal ou aniversário.

O melhor dia das férias era o das expedições organizadas por nossos pais às livrarias do centro, quando podíamos, minhas irmãs e eu, escolher os livros que bem entendêssemos. Tal era o meu fascínio pela leitura que, em certa ocasião, quando tive que passar uma semana em casa, alquebrada de febre pela caxumba, meu pai, vendo-me abatida pelo terrível tédio, trouxe-me no fim do dia um romance, intitulado “O Quarto Mágico”, que versava, justamente, sobre um menino que não podia sair da cama e descobria, a partir disso, o inesgotável passatempo da imaginação. Que susto! Então os livros podiam ser sobre nós? Ah, eu bem queria escrever um livro sobre as pessoas!

Antes de começar o ano letivo, com a satisfação de organizar o material cheirando à novo dentro da mochila, eu me comprazia em folhear o livro-texto de Português, antecipando as lições de interpretação. Paulo Mendes Campos, Moacyr Scliar, Ruth Rocha, Rubem Braga: estavam todos ali.

Ali também tive meu primeiro contato com Drummond. As palavras tatuaram-se em mim, irresistivelmente, tão logo sobre elas corri os olhos extasiados:

“De repente você resolve: fugir.
Não sabe para onde nem como nem por quê
(no fundo você sabe a razão de fugir; nasce com a gente)”.

Ai, a cumplicidade sussurrante de um parêntese! Eu também queria escrever entre parênteses! E por pouco não deixava as redações da escola inteirinhas entre eles, só para ter o gosto de me revelar daquela indireta maneira, toda em segredo.
O feitiço estava feito: eu queria ser escritora!

Depois me disseram (ou eu mesma me disse) que não era bem assim. A profissão de escritora parecia por demais impalpável ante a concretude irrecusável das carreiras tradicionais: médico, engenheiro. Advogado. Esse, pelo menos, tinha mais a ver com a palavra, negociei comigo mesma, timidamente.

Por me serem atribuídas incríveis habilidades de observação e entendimento das questões humanas - pelo menos das que tínhamos aos dezesseis anos de idade - cheguei até a cogitar estudar psicologia, mas, naquela época, não sabia direito o que faziam os psicólogos. Ouvir os outros? Quando o que eu queria mesmo era e-s-c-r-e-v-e-r os outros!

Imagino que mais ou menos assim ocorra com quase todo mundo: um dia, quando damos por nós, nos descobrimos morando num apartamento confortável, decorado ao nosso próprio gosto, num bairro conceituado de classe média. E isso é bom, embora não necessariamente reconheçamos a trajetória que nos trouxe até ali. Em que curva do caminho terá ficado o menino que nos trazia pela mão?

Que diria de mim a menina que fui em meu disfarce de advogada? Então me ocorre que, provavelmente, não diria nada. Ou não sobre isto! Gargalharia talvez, e desataria a correr, gritando já loooonge:
- Nem me pe-ga! Nem me pe-ga!

Porque isso de nos medir pelo que nos tornamos, fazemos nós, não as crianças, nem mesmo as que fomos e de quem já não nos podemos lembrar. Olhando para trás é que as ressignificamos arbitrariamente, emprestando-lhes a seriedade pretensiosa com que teimamos em lidar com tudo, tudo tendo que ter um propósito, um resultado que nos valide socialmente, economicamente, que nos torne bem sucedidos aos olhos do panóptico cravados em nós.
Esta tarefa que a nós mesmos incumbimos é que faz todo o caminho perder a graça. E porque estamos ocupados demais em boicotar-nos ou justificar-nos perante expectativas exógenas é que negamos à criança que nos sonhava, não a profissão, pois nem mesmo era isso que ela queria! Negamo-nos, na verdade, a fruição do próprio e gratuito brinquedo!

E porque não seremos jamais flautistas, ou a primeira bailarina do Municipal, ou escultores, ou domadores de tigres, ou pilotos de avião, ou trapezistas, nem mesmo tentamos ocupar a arena, quando é certo que ninguém nos estaria olhando!

Por que diabos já não nos bastam as palmas a que agradecíamos com o meneio teatral no picadeiro do nosso faz de conta? A cambalhota era um triplo mortal, toda partida de futebol era final de campeonato e nós jogávamos sempre com a garra do artilheiro para a multidão em delírio. E nem nos damos conta de que a multidão éramos nós! Éramos, na piscina do clube domingueiro, o medalhista olímpico e a explosão da nossa própria torcida. E tudo porque, no fim das contas, era o prazer do movimento, não a perfeição, que importava.

E éramos, por entrega ao jogo lúdico, o que quiséssemos ser, sem obrigação de definitividade, sem o peso das “grandes” definições.

Por isso, hoje, decidi conceder-me, já não o ambicioso ofício, mas o antigo brinquedo das palavras. E que imenso prazer me dão, ainda que se acumulem para o mero deleite decorativo do colecionador de pequenas quinquilharias afetivas e outras miudezas de estimação.


4 comentários:

  1. Anotações de vida....

    Ai, ai, ai, ai, ai!!! Mas que menina mais linda essa sua! Lembra alguém que eu conheço... Não é incrível como elas dançavam nos livros, nas revistas, nos outdoors, em todos os lugares estavam escritas! E uma mágica só delas que eu amava (amo ainda, ordena meu mundo) é a de dar nome às coisas, e pelo nome, sabe como é, o universo se fez!!! Da-lhe o verbo!

    Sim minha querida, desapeguemo-nos do que está de fora, deixemos de lado os nomes que nos deram e acolhamos outros, os que quisermos!!!

    Amiga, amo teus textos, amo tuas palavras, te amo!

    Não pára!

    Beijos,
    Elis

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  2. Já que o espaço é público, mas a intenção é comunicar apenas a você, ficarei com os parênteses e as minhas entrelinhas (penso que não preciso TE dizer muita coisa).

    Como disse a Elis, "não pára".

    Bil

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  3. Kk,

    Vc é uma das minhas companhias favoritas desde a a palavra "sertão"! Aliás, sua postagem "Frankfurt" não poderia ter sido mais precisa! E o novo codinome Ariel, terá a ver com a musiquinha do October Project?
    "My name is Ariel and I want to be free
    It is your sorrow that has made a slave of me"
    Amo você, querida! Quando você vai mandar um texto seu para postarmos aqui no blog?
    Beijos,
    Betinha

    Elis-do-céu!
    Pois não sabes que, para serem belas aos teus olhos já tão acostumados à beleza, minhas palavras andam mais faceiras e com algum carmin nas faces ;-)?

    Biiiiil,
    Vc apareceu no blog!! E o que ficou subentendido nos seus parênteses ecoou bem alto em mim! É mesmo deliciosa a reciprocidade! Você não sabe..aliás, você sabe exatamente o que significou para mim encontrar você aqui! Obrigada obrigada obrigada!

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