sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Este é um texto mais antigo, mas é pelo exercício de postar ;-) :


A verdade é que também eu não vira o homem, a princípio. Estava propositadamente distraída, conforme dita a etiqueta urbana como regra de conduta para o não-lugar em que estávamos: o metrô. E não qualquer composição do metrô, mas, mais precisamente, aquela de quase nove da manhã, repleta de pessoas com tanto mais pressa quanto maior a iminência do atraso.

Havendo muitos assentos à escolha, costumo tomar o calculista cuidado de sentar-me à janela, não, é claro, por qualquer pretensão contemplativa, já que a paisagem subterrânea de cabos e trilhos não convoca a qualquer expansão de pensamento.

Se me sentava, como naquele dia, à janela era apenas pelo utilitário propósito de não ser instada, seja por pudores de consciência ou pela adulação de terceiros a ceder o lugar para alguém e ter a amolação de ter que fazer o restante do percurso em pé. Pois era muito mais difícil esforçar-me por não fixar os rostos das pessoas, tendo-os assim à altura do meu, qual espelhos cegos, que se defrontam sem nada refletir. Porque é preciso não olhar o outro, sobretudo não ater-se a ele com interesse, não tentar jamais adivinhar por detrás da mímica do rosto a sensação correspondente.

Aliás, as inovações tecnológicas têm tido grande e positivo impacto na otimização do teatro urbano do alheamento. São engenhosas redomas eletrônicas, que superam, com grande vantagem, o manuseio desastrado do papel-jornal. Estes (os jornais), também se modernizaram e têm, por vezes, exemplares de folhas mais curtas, e, portanto, mais funcionais à leitura em trânsito.

Não infensa aos artifícios escapistas da modernidade seguia eu, sentada à janela, fones ao ouvido, olhando cegamente através dela para o fio contínuo de paredes.

Aos versos da música (“tem certos dias /em que eu penso em minha gente”), reagi instintivamente, olhando para dentro do vagão. Primeiro indistintamente, para a massa uniforme:

(...)“E sinto assim todo meu peito se apertar”.

Sugestionada, aguçaram-se-me os olhos:

“(...)Porque pareceQue acontece de repenteComo um desejo de eu viverSem me notar
(...)”

E verso a verso, esculpiu-se diante dos meus olhos um rosto. O rosto enrugado e tímido do homem, encimado por um cabelo muito branco, de tal forma branco que era impossível adivinhar-lhe a antiga cor.

Equilibrava-se com dificuldade, na disputa silenciosa e desigual por um minguado palmo do mastro central, em que se apoiar. Ninguém lhe cedia espaço. Ninguém o via.

A gravação soava no vagão: “Os assentos de cor laranja são preferenciais para idosos, gestantes e pessoas com crian(...)”.

Um jovem levantou-se determinado do assento preferencial (pensei que lhe cedia o lugar), no que foi imediatamente substituído por uma gorda senhora que se atirou pesadamente, ocupando o espaço com hostilidade canina.

Equivaliam-se em estatura, quase, o senhor e o estudante que se levantara, agora à sua frente, de mandíbulas insolentes a mascar chiclete, mas, curiosamente, o jovem, olhava-o, como que por sobre o ombro, por sobre (me ocorreu) a existência.

E porque nada pedisse o senhor, tanto mais me crescia a urgência de lhe ceder o meu lugar. No entanto, como ceder a ele, a ele, especificamente, o meu lugar, se estávamos à boa distância e os circundantes espreitavam com rapina ferocidade o mínimo movimento nos assentos?

Fiz menção de erguer-me, o vizinho já encolhia de má vontade as pernas, liberando-me a passagem, mas o velhinho se encaminhou à porta do vagão, parece que menos por ter efetivamente chegado a seu destino do que por dócil obediência ao movimento da multidão, que se derrama, a cada manhã, sobre a plataforma da estação Carioca.

Voltei a sentar-me, desalentada, privada de ter de mim ao menos o orgulho besta de uma minúscula boa ação, e virei o rosto em direção à plataforma, afastando-me, com isso, o mais que podia da cena. E do pensamento.

Eis que ali, aguardando o trem no sentido Zona Sul, um pai, puxando uma garotinha pela mão, ensinava-lhe, por brinquedo, sem saudade ou despedida, um aceno de adeus.

Um tanto alegoricamente, a composição em que eu estava partia, indiferente. Sem saudade ou despedida. Sem despedida ou saudade, partia, como é destino de tudo que corre nas veias escuras da cidade.

- Próxima estação: Uruguaiana
- Roberta Mendes

Um comentário:

  1. Ahhhhhhhh o samba!!! Tem coisas que só podem mesmo ser ditas para fazer a gente sentir daquele jeito se for num samba!!

    ResponderExcluir