segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O Banho

- Por Roberta Mendes

Críticas haverá, e com razão, sobretudo dos ecologicamente engajados, à minha irredutível confissão: eu adoro tomar banho! Desapressadamente, bem entendido. Não foi por falta de conscientização ambiental, é preciso que se diga. Em vão a mãe onisciente, dando pela minha prolongada ausência nos espaços comuns da casa, protestava ante à porta do banheiro:
- Minha filha, a água do planeta!

E com isso cumpria a missão milenar da maternidade de nos infligir, em tantas nuances quanto possível, a irremissível culpa cristã. De modo que não há a quem mais responsabilizar, senão a mim mesma, por esse pouco comprometimento com as reservas líquidas da humanidade. Se serve de desculpa pública, é das poucas searas em que permito que o hedonismo sobrepuje o sentimento de dever moral Também aqui haverá protesto dos que me conhecem bem... Ignoremo-los em nome da fluência narrativa...

Todos os que tivemos, na infância, que dividir o quarto com um irmão, por maior comunhão afetiva de que se revestisse o fraterno convívio, todos os que fomos criados nesse gênero amputado de casas que são os apartamentos, casas sem quintal ou jardim que nos servisse de esconderijo para os rompantes de evasão familiar, principalmente se éramos de índole mais retraída ou contemplativa, todos, acredito, ansiávamos pelo momento do banho, para estarmos, finalmente, a sós conosco mesmos. Pois o banheiro era o último bastião da privacidade, o lugar em que estávamos legitimados a ficar de portas fechadas, a salvo, portanto, da implacável onisciência materna de que falávamos.

Ali não entravam os deveres da escola ou o invasivo olhar do outro que, mesmo de forma sutil, tantas máscaras nos ía vestindo ao longo do dia. "O coração é teu, mas o semblante é do próximo", dizia o pai, o que era uma maneira mais poética, certamente, e não menos eficaz, de dizer "engole o choro".

Uma vez no banheiro, portanto, tirava o sorriso como uma grossa maquiagem e, se era dia de chorar, chorava, diluída no fio contínuo da água que me lavava de todos os disfarces.

Se bem que não só a tristeza se desafogasse no banho... Ali tinham espaço alegrias que também não convinham ser exploradas publicamente. Eram alegrias do corpo, descobrindo-se (ah, tudo ali eram rituais de despir-se). De modo que às vezes, dava-se justamente o contrário, isto é, despida a máscara de seriedade, tomava lugar o sorriso malicioso, lembrando do beijo que me roubara o primo, do canto dos lábios, na frente de todos, mas sem que ninguém percebesse, embaralhado nos cumprimentos de praxe. Estes primeiros embates com a astúcia masculina intrigavam-me por horas, pelo poder mobilizante que me faziam adivinhar da natureza feminina sua vocação de presa.

E olha que, naqueles tempos, os banhos eram sempre frios, que não tínhamos, por ser absolutamente desnecessário, calefações outras que não o inclemente sol alencarino. A pele adolescente, retesada de juventude, como a carne branca da lichia explodindo em sumo ao menor contato com qualquer (ainda que delicado) apetite, vivificava-se inteira sob o jorro fresco da água, acometida de arrepios, potencializados, possivelmente, pelo transtorno dos hormônios.

Ai, sentir-me escorrer os cabelos como nas chuvas da infância! O banho eram as chuvas da infância, e a cachoeira, e qualquer coisa que desencadeasse essa memória genética de estar em interação com o elemento líquido de onde emergimos. Daí, talvez, a renovação de ânimo com que saía, cabelos molhados, do banho, como que renascida. E predisposta aos grandes acontecimentos. Pois o banho pontuava o dia, precedia o encontro com os amigos, o passeio na praça, o olhar do garoto de que se gostava, a entrevista de emprego. O banho precedia também, e invariavelmente, a viagem.

Depois, como quase tudo, o banho rendeu-se ao utilitarismo da rotina, reduzindo-se drasticamente em duração, para júbilo dos ambientalistas, e, certamente, em prazer, para lamento meu. Mas, sempre que posso, sempre que se abre no dia uma fresta para a possibilidade de fruição, lanço-me sem culpa ao antigo ritual, apagando as luzes da casa, providenciando no quarto contígüo alguma música e fechando, deliciada, a porta atrás de mim, que é uma forma de me delimitar, enquanto indivíduo, do resto intruso do mundo. Então ligo o chuveiro, fazendo-me farta chuva, que durará o tempo que leve uma tempestade, até que de mim se tenha vertido a última gota - impossível definir se me lavo ou se transbordo de plena nudez, de toda a nudez possível, felicidade orgânica, realidade imediata do corpo!

4 comentários:

  1. Amiga, o corpo! O mundo material! Te contaminei? Hihihi! Você emplacou a lichia que dividimos, tão legal isso!Me senti a mais cúmplice... o banho, poucos momentos podem ser assim, tão exclusivos, tão reveladores de tudo que eh secreto! Amei!

    Elis

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  2. Menina, isso do corpo em si, parece que me contaminaram os meus pais. Doença hereditária, sabe? ;-) Mas, certamente, o banho é um momento de contato, de convergência entre a psique e o corpo. A sensação de limpeza talvez resulte dessa outra higiene, mais sutil, que sobrevem justamente do precioso alinhamento. E olha aí o banho se firmando como palco para a experimentaçã reichiana!!! ;-)
    - Roberta

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  3. Ouvi seu texto. Sim, seu texto foi lido para mim.
    Gostei. Não acho que seja ultra rebuscado, difícil. É uma questão de estilo, de personalidade mesmo. Soube que vc é advvogada. Desista de perder o barroquismo, esse é inerente a sua prática.
    Tenho uma observação.O começo do texto, qdo você se refere aos ambientalistas, me parece desnecessário posto que não se conecta nem formal nem contextualmente com o que flui depois. Até pq lá no final tem a referência a rendição do banho ao utilatarismo contemporâneo.
    De resto, lembrei-me dos meus banhos. E gostei.

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