sábado, 13 de junho de 2009

Lembrando o Crato...

Por Roberta Mendes


À época, morávamos no interior, que, pensando bem, era uma forma de morar por dentro, na origem mesma das coisas. Ali, onde a fronteira era um rabisco aleatório de criança e o sotaque cearense se pernambucolizava, esquecido das rixas entre as orgulhosas capitais.

Dali do interior, as capitais mais pareciam periferias, em que a brasilidade se rarefazia no redemoinho globalizante. Mas não ali! O país chegava-nos sem intermediários, sem filtros, deitando-nos raízes, em ligação direta com a terra - donde me vem, ainda hoje, uma sede de barro esturricado e o risco de me encharcar em demasia à mínima exposição a qualquer emoção mais úmida.

Morávamos lá onde se forjavam os modos genuínos da pátria, onde se cunhavam, em suassunas vivências, arquétipos do povo nordestino, este povo dotado de uma tão intrínseca teatralidade, que se presta , bobo da corte incumbido da gargalhada nacional, à caricaturização catártica da própria alma brasileira. Estava mesmo tudo lá, no microcosmo da cidadezinha: a pura raça mestiça. Durando. Negando-se à extinção.

E havia o folclore, não como um verbete esquecido na enciclopédia. Tocava-se-lhe o significado! Estava na rua, vivo, em danças multicores, empoeiradas de caminho. As bandas de pífano, os baques de tambores cabaçais, os irmãos Aniceto, meu Deus! Ali, bem no pátio da escola!

Só de ouvir o tilintar de um triângulo e um couro vergastado de zabumba, saíamos da sala aos pinotes, sapateando cocos, falanges transidas - obedientes ao ritmo como os ratos ao flautista de Hamelin. Apropriávamo-nos da cultura, em rodopios de ciranda e batuques de mineiros-paus. Era nossa! Ai, era tão nossa a memória do povo!

Certa feita, por exemplo, os professores encarregaram cada turma de aprender um ritmo para apresentar na reunião de pais. À minha classe tocou o número da caninha-verde, que dancei, a princípio, encabulada, descabendo no meu tamanho, menina tão grande entre os demais. Depois, fui pegando gosto pelo folguedo, acometida de requebros, até escorrer-me o rastro ocre do papel crepom pelo tronco das pernas. Da manifestação secular, de que muitos talvez jamais tenham ouvido falar, restou-me a vívida sensação de ter-lhe emprestado corpo. E ninguém lava de mim o borrão alegre dessa lembrança, tal como avistar de longe o verde vale ao fim da estrada seca, bem fosse o oásis do sertão como, aliás, lhe chamavam.

A cidadezinha incrustada no sopé da chapada, parecia um rebento, eternamente nascendo de um ventre gravídico de montanhas, respirando sobre nós sua aragem fresca. Eu aspirava os polens fundamente, congestionando os brônquios ignorantes de florescer. Passava julhos asmáticos, o peito temporão piando-me alto pela casa, como se levasse uma avezinha desamparada dentro.

A mãe afligia-se, valei-nos padim pade Ciço!, e me dava beberagens, aprendidas da sabedoria local, condimentadas de exóticos, regionalíssimos sabores. Pois, se é certo que todo antídoto se faz do respectivo veneno, era preciso, para eu me curar das flores do Crato, instilá-lo, gota a gota, na circulação teimosa do sangue, até eu transpirar, em vapores febricitantes, a garapa nauseante de pequis e mel de jandaíra.

Note-se que o exotismo dos sabores se transmitia ao próprio nome das coisas. Ali, a língua inventava estranhos modos de dizer, ressuscitando palavras mortas, improvisando corruptelas, em tão espantosa sintaxe, que o sentido dos ditos não se gastava jamais. Ainda que as histórias cismassem em se repetir...

E não é só que se recontassem os causos, pilando reminiscências. Era o roteiro mesmo das vidas que se reprisava, tomando-se cuidado para trocar o nome dos personagens, a fim de, ao menos, assegurar as novidades...

Era a outra face do cara-ou-coroa da tradição: os rapazes sonhando estudos na cidade grande; as moças suspirando pelo casamento. E como a impaciência é natural da adolescência, criou-se a moda de as moças, aos quinze anos, fugirem desarvoradas, precipitando votos de matrimônio em dramáticas fugas contra oposição nenhuma. Fiéis ao texto, os pais encenavam grandes zangas; mediam forças com os genros ingratos, deixando de falar-lhes e de prover-lhes – esses dois temíveis castigos - para depois desfilarem os netos, satisfeitos, nos bailes do Tênis Clube.

A transgressão era, então, cumprir o destino, apenas mais cedo do que recomendavam os costumes. Depois, os moços fujões se enfastiavam, como se os tivesse a bravata eximido de ousar outra, aventureira existência. As mães bordavam-lhes, queixosas, pesados enxovais, enxovais-âncoras, que os mantinham para sempre ao alcance da asa protetora.

Como podia um lugar de infância tão vasta, ser tão estreito para a juventude?

Talvez por isso, quando nos mudamos, eu intuísse pela conta dos anos, que partia mesmo em oportuna hora. Mais do que saudade, eu levava uma imensa gratidão pelo colorido das memórias e um mal disfarçado entusiasmo pelo tempo-espaço por vir. E vieram outros brasis. E, mais além, alemanhas, descortinando europas, geografias do longe.

Ficou-me, no entanto, a bússola do ser, pelo magnetismo dos afetos, tendendo sempre a leste, apontando a Nordeste – norte primeiro da velha alma retirante. Por isso, tudo que vem de lá reverbera em mim antigas notas de pertencer. Abrasileira-me. Atiça em mim a brasa do amor à pátria.

Feito no dia em que me prostrei nordesterrada ao reconhecer, sem mais nem menos, um assovio entoando a Asa Branca! Meu coração se agalopou do susto. Corri em direção à janela. Lá fora fazia Hannover, ainda. Mas dentro de mim era Crato. Êita saudade de casa! Minha garganta travou, ameaçando chorar. E o país em peso se pôs a cantar em mim!

2 comentários:

  1. Como pode uma região tão seca, brotar imagens tão vivas e frescas como a tua? É você que tem os olhos para ver e os dedos artesãos para construir essas metáforas tão tão...(me ajude com a palavra!) :)

    Gosto especialmente de algumas frases curtas em meio as descrições, que dão um ritmo jovem ao texto.

    Um beijo minha flor do Crato.

    Kk

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  2. Amiga, que Crato é esse que me dá vontade de voltar à tempos em que a terra parecia tão mais nossa! Ai, que saudade de quando a natureza e a cultura mais pareciam árvores às quais recorríamos por sombra... podíamos então deitar em suas raízes, contemplando nacos generosos de céu azul onde desfilavam as nuvens viajantes... quantas e quantas vezes me punha eu a adivinhar o possível destino daquelas passantes no desejo de poder um dia, como elas, desbravar outras quintas... Ai, que lindo o seu Crato, que linda a sua liberdade, que lindo o seu texto!

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