quinta-feira, 2 de julho de 2009

A Festa da Menina Morta


- Por Roberta Mendes


A sala de projeção era pequena e os poucos freqüentadores sentavam-se rarefeitos, guardando distâncias. Grupamentos, se os havia, eram de pares ou trios, respeitando sempre o hiato de cadeiras entre uns e outros. Apagadas as luzes, o filme começou sem rodeios, com a mesma urgência urinária do personagem que lhe inaugura a trama. E não haveria outra.


A história transcorre lentíssima, torturante, com o fito de nos aprisionar, a nós descolados e urbanos, na própria falta de perspectiva das vidas da comunidade protagonizada. Somos abduzidos para dentro de uma claustrofóbica ambiência, em que a mente, ao ameaçar expandir-se, bate com violência contra a resistência das coisas.


Tão estreita de sonhos, tão carente de transcendência, que a comunidade atribui à própria confirmação da morte o sentido de um milagre. E, assim, festejam a menina morta. Vale notar: não se trata de pessoa encontrada com vida. Não se trata de alguém que tenha escapado ao destino. Tampouco trata-se de uma criança dada como morta e magicamente “ressuscitada”. Todo o tempo o sabíamos, o título nos adverte: a festa é mesmo em torno da menina morta.


Não é a toa que assim o seja, pois a morte só é desfecho para o indivíduo. Para a comunidade, sobretudo se tão à margem, não só do rio, como das engrenagens históricas, a morte é um acontecimento. E talvez o único. Mata-se o porco com lentidão, para que dure mais a ação no tempo. Adia-se o enfarto em face da água que não lhe trazem, porque morrer desta desassistida maneira nem mesmo é acontecer.


Os prazeres, por serem tão poucos, tanto mais ensejam excessos. O álcool degenerado em “ismos”. A comida sebenta, revolvendo-se nas bocas debochadas. A promiscuidade e o incesto. Tudo feito no escuro. Não às escuras ou às escondidas, pois tal disfarce não se fazia necessário. Tudo se passa no escuro, mesmo. Os olhos acostumados a intuir sombras e desprezar contornos, como que fotometrados à insuficiência da lâmpada incandescente. A careta, se de dor ou de gozo, mal se divisa no escuro. E assim, condicionados ao escuro, ninguém parece mesmo dar falta da nitidez, seja das feições ou das sensações. Sobretudo, a do pensamento.


Tudo se dá em surtos, em transes, em convulsões, em macumbas presenciadas com letárgica conivência, pois todos sabem que se trata de gritar contra o vazio. É o que lhes resta. A vida lhes perpassa apenas como uma agitação dos sentidos, uma hiper-excitação do corpo à falta de metafísica.


Mas não é do homem sonhar sempre com a outra margem, mesmo que sua história o ancore pesadamente ao fundo turvo do rio? Porque não vão embora, meu Deus, se não haveria ali sequer polícia, a interceptar botes e frustrar fugas? O que os impede de deixar para trás uma tão miserável existência? Olham para o curso da água e não lhe enxergam caminho!


Há em torno daquela população ribeirinha uma cerca invisível, um campo de força tão forte, feito o halo da menina morta. Regidos pela autoridade das ausências, a quem não se pode recorrer pelo indulto da liberdade, aqueles habitantes estão presos. Presos aos olhos que os validam, de que não se podem afastar. É como se, subtraídos ao olhar do grupo, corressem o risco de uma (orgânica) des-integração. Mais do que o medo do desconhecido, assusta-os a possibilidade da própria condição de desconhecidos, por isso não ousam se enxergar além. Por isso, perseveram dóceis no que não presta.


Pensando bem, não são em nada diferentes de nós. E é por isso que, visceralmente, nos exasperam. Porque nos lembram que também ouvimos de coração trêmulo às crenças íntimas que antevêem dor. E seguimos de abatido ânimo, negando-nos à felicidade, por temor de contradizer as escrituras. Também nós nos confinamos na segurança dos lugares estreitos. E, mesmo sufocados, assistimos o filme até o fim.


Ficha Técnica:
Título Original: A Festa da Menina Morta
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 110 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2008
Estúdio: Bananeira Filmes
Distribuição: Imovision
Direção: Matheus Nachtergaele
Roteiro: Matheus Nachtergaele e Hilton Lacerda
Produção: Vania Catani
Fotografia: Lula Carvalho
Direção de Arte: Renata Pinheiro
Elenco: Daniel de Oliveira; Juliano Cazarré; Jackson Antunes; Cássia Kiss; Dira Paes

6 comentários:

  1. Então amiga, só me resta fazer minhas as tuas palavras!

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  2. O rio é uma das imagens mais inquietantes. Desde aqueles que viviam lá no fundo, agarrados às pedras até a terceira margem do rio, de Guimarães, um rio chamado tempo do Mia Couto, e tantos outros menos importantes que já pediram passagem, mas não passaram. Não passam.

    Tenho que falar de novo que tua escrita me arrebata?

    Bjo, Kk

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  3. OLá Roberta,

    ótima resenha, poética. Deu vontade de assistir.

    Como está a oficina c/ o Proença?


    bjs

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  4. Como é estranho pensar em "festa" e "morta" na mesma frase.

    Parabéns pelo texto e escolha.

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  5. roberta,
    eu ainda não assisti ao filme mas fiquei muitíssimo intrigada. gracias pelo link. nos vemos pela blogosfera. beijos e flores.

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