
Ainda ontem a solidão era confortável, como estar bem aquecido num dia frio - agasalhado de si mesmo. E, mesmo agora, não era ruim. Era mais como ter ouvido música o dia inteiro e já não distinguir cada canção em sua singularidade - calos da sensibilidade, exposta longo tempo a si mesma. Gato que, brincando com a própria cauda, se desinteressasse, de repente, e olhasse em torno, buscando algo fora e além de si, que sirva de presa para sua curiosidade inata de caçador. Algo para seguir ou perseguir. E quem diria que o gato, ao perseguir, está fugindo de si mesmo e de seu tédio imenso.
Um senhor, já bem idoso, riu-se do meu mau jeito para destacar a sacola de plástico em que vão os legumes para a devida pesagem e mostrou-me, com mãos desapressadas, a destreza do gesto banal, com grande orgulho, como se ensinasse uma criança a amarrar os cadarços, encontrando, enfim, a utilidade de um gesto repetido ao automatismo ao longo de tantas feiras. Pois se muitas coisas só ganham sentido se as compartilhamos... suspirei, ao esbarrar com a consciência de que morava só, o que talvez explicasse a minha lembrança, um tanto descabida, de comprar uma nova lâmpada para a sala, se é que não se possa atribuir alguma carga simbólica a essa urgência por mais claridade.
Seria uma luz branca! - pois a que tinha era amarelada e jorrava sobre tudo sua insuficiência resignada. Mais parecia que se encolhia de timidez, com medo de revelar os cantos da sala. Não que essa sensação de penumbra me incomodasse, a mim que costumava chegar em casa do colégio apagando as luzes para acender o pôr-de-sol nas paredes do escritório da (já remota) casa paterna.
O fato é que comprei a lâmpada e cheguei em casa com meu pequeno projeto de trocá-la, experimentá-la, experimentar sua nova claridade branca sobre tudo. Em cima da mesa, registro desligado, por um zelo excessivo de mãe que continua ecoando dentro da gente, senti eu também orgulho do banal. Eu, que até poucos anos ouvia a voz altiva da minha mãe a prover todas as necessidades da casa, dando ordens aos empregados, liguei o registro, depois o interruptor e fiquei olhando para o pequeno milagre de claridade que eu mesma providenciara.
Essa palavra “providenciar” tem não sei quê de senhorio e força, poder de movimentar ou de bastar-se. Fiquei assim, plena, plena por umas horas mais, preenchendo sem esforço a casa e a solidão. Soberana. Faça-se a Luz! E lia, sob uma luz toda branca, o livro de Clarice Lispector. Faça-se o som! E a voz quente do Dave Matthews se espalhava pelos cômodos, preenchendo-os, sim, preenchendo tudo, que nem ter-se tornado audível um pensamento meu.
Pus a máquina para bater roupa, só para ter o cheiro de amaciante, feito exalado da memória de eu ter um lar e ser parte de uma família. Cerquei-me dos meus sentidos. Até que perdessem a graça. Era a hora em que se começa a tentar descobrir o porquê das coisas que talvez não tenham porquê. A menos que lhes atribuamos um. E ainda bem que as coisas é que não nos cobram os porquês de as termos feito...
Também, é culpa da Clarice, que me inclina toda para o lado das subjetividades! O telefone tocou. Não estava esperando. Senti-me resgatada, embora não soubesse exatamente de quê. Abstraí a voz amiga da realidade de distância e telefone e era como se o meu interlocutor estivesse no quarto ao lado e sua proximidade me dispensasse de prestar atenção no que dizia. Porque a presença e o convívio muitas vezes são essa exuberância de prescindirmos de palavras. Quando desligamos é que me deu pena de não ter prestado mais atenção no que dissera, qual tentar lembrar a letra de uma música e pegar-me balbuciando o lá-rá-lá inútil de sua melodia.
E sem mais com o quê me ninar, fiquei tão de mim à toa! Sem sono e sem ocupação com que gastar as horas restantes do dia. Em torno, o silêncio, disfarçado de televisão. Por dentro, palavras, palavras tantas - ai, sina de comunicar que nos deixa aos sós tanto mais sós, embora aos que pertencem, mais pertencentes.
Bem poderia o telefone tocar novamente, pensei, suplicando / arrependendo-me. Tarde demais! Uma vez esperado, um telefone não toca jamais. Todo usuário o sabe, embora não se encontre sobre isto qualquer alerta, nem mesmo nas letras miúdas dos contratos.
E, assim, adquiria por força, um hábito novo de des-esperar.