- Por Roberta Mendes
Deus sabe - aliás não apenas Deus, porque eu, orgulhosa de meu anacronismo, gostava de espalhar aos quatro ventos que jamais aderiria à era do computador. Não. Nada poderia substituir o manuscrito! A letra: o pergaminho de toda uma personalidade para um grafólogo. E para os mais leigos, porém não menos atentos observadores, o retrato de um estado de espírito. A letra trêmula dos suicidas, a caligrafia caprichada das namoradas em papéis de cartas coloridos. Há delas que chegam a fazer desenhos, florezinhas no rodapé, espirais, setas, arabescos, resquícios ancestrais, linguagem das cavernas, pois, como intuíam até mesmo nossos mais remotos antepassados, uma imagem vale por mil palavras.
E há a sensação de poder tocar a lembrança da mão em febril repouso naquele trecho da carta que se sabe de custosa formulação, a reticência, não da frase, mas do pensamento do remetente. A impaciência da palavra escrita com força, a tinta da caneta quase falhando, a ponta deixando apenas um rastro fundo de palavra, como uma boca que se armasse para um grito e, de súbito, emudecesse.
Para os escritores tinha o manuscrito ainda a função documental. Mais do que isso: testemunhal. Não de testemunha, mas de testemunho. O poema assim escrito e palpável é um marco irrefutável do encontro mágico com a inspiração. As imagens estão libertas, libertas do poeta para sempre. Ele, por sua vez, liberto da urgência de comunicar o que não sabe, mas que é a matéria mesma de seu pensamento e de sua percepção do mundo. Às vezes, o poeta volta ao poema, não para lê-lo ou repensar um verso. Volta, na verdade, ao objeto, ao branco enfim sobrepujado da página manuscrita, certificando-se, com a ponta cega dos dedos, o braile sutil da esferográfica, as cicatrizes suaves da silenciosa batalha.
Já o branco da página do computador é na verdade um buraco negro, em que a palavra, mesmo depois de escrita, pode sumir sem deixar vestígios, o que vem muito a calhar para a higiene dos rascunhos. A palavra já não é, então, irreparável. Alguém lembrará de dizer que borrachas desde há muito possibilitam emendas, correções, supressões. Mas a borracha deixa a lanhura da hesitação e do erro. A borracha não era como esse botãozinho de deletar, que permite que se volte sobre os próprios passos. A borracha assinalava o tropeço, o desvio. No computador, depois de revisados e corrigidos os erros por ele mesmo apontados (que agora já nao se limitam mais às revisoes ortogárficas, oferecendo também as gramaticais), parece que o texto já nasceu pronto, perfeito, irretocável.
Não só a possibilidade irrestrita de remissão dos erros, mas a agilidade de dedos que se desenvolve a partir do manuseio diário das teclas, tudo contribui para que não se reflita tanto, é dizer também que não se censure tanto o que se está a dizer. Está-se pensando uma coisa e lic lic lic (os teclados nao fazem tec tec tec como as suas precursoras máquinas de escrever), lá está a coisa escrita, para surpresa do próprio autor. Teriam as letras nascido do branco da tela? Quem nos traíu assim a vigilante consciência? Às vezes, o susto é tanto de ver escrito exatamente o que se pensou em dizer, que o autor superticioso não se atreve a apagá-lo, tomando-lhe por revelações de um oráculo virtual.
Todavia, o que verdadeiramente me converteu à escrita eletrônica foi a possibilidade de escrever no escuro. Sempre pensei - e acho que acontece com todo mundo - sempre pensei muito mais claramente no escuro. À noite, deitada na cama, mãos atrás da cabeça, o teto como uma página imensa, onde cabiam todas as palavras, todos os diálogos, todas as metáforas. E vinha aquela urgência de escrever, de registrar a lucidez desses sagrados delírios de insônia. Mas era só acender a luz para sentir incontinenti ofuscar-se a projeção desse filme interior, e já não se podia ver nem distinguir as imagens que me povoavam.
Por certo que já tinha tentado outras alternativas, como, por exemplo, ter sempre à mão um pequeno gravador e ir ditando o que dizia o pensamento. Esse método se mostrou falho, essencialmente por dois motivos: 1) pela artificialidade de ouvir a própria voz, sem ter interlocutor real a quem dirigir-me e, 2) porque esse pensar alto não permitia a concatenação seqüencial ótima, inerente às idéias escritas. Ainda assim, muito me serviu o gravador para mapear pistas de pensamentos. É que, se não cuidamos, perdem-se para sempre uns insights até aproveitáveis, sabe-se lá, se não eram a solução de todo o mistério.
Somente o computador me possibilitou a magia de escrever no escuro. Mais do que isso: a magia de ver a luz como que encrostada de letras, de ver cada letra como que brotando dessa mesma luz, consumando assim a ancestral metáfora da criação artística. O mundo todo apagado em volta. Só as idéias. Só as idéias acesas.
Isso sem mencionar a internet, a grande rede onde se cruzam os fios de tantos destinos, onde tantos se encontram, se desencontram, encantam-se com o novo, o vário, o mundo; iludem-se com o virtual e deixam-se brincar, por vezes, de traiçoeiros jogos de faz-de-conta. Os e-mails são cartas aladas, permitem respostas imediatas, diminuindo, por certo, em caráter absoluto, o tempo de espera, mas potencializando a carga ansiogênica da passagem dos segundos, somente redimida pelo messiânico alerta "you've got mail". Os chats, um pequenino milagre de simultaneidade, em que a distância não tem império. Alguns programas de bate-papo eletrônico chegam ao requinte da simultaneidade, que é ver o pensamento do outro se construindo letra a letra, palavra a palavra. Vê-se como o pensamento avança e recua, escreve, apaga, conserta o alicerce do raciocínio, seqüestra letras, permitindo, assim, ao interlocutor uma espécie de onisciência sobre a formação da linguagem do outro.
Ah, pianinho de letras, em oração ante às tuas sempre imprevistas panes, imploro: não dê sumiço às minhas palavras! Lança-me rede afora: pescaria ao inverso! Conta-me ao mundo! Impede que eu me apague!
A propósito de apagar, apago-te agora. Acendo o mundo em volta de mim, os móveis do quarto e sua concretude, e me arrumo diligente para dormir. Depois, restabeleço a penumbra e nela me enrosco e me anulo, decomposta de contornos e formas. Só as idéias. As idéias que não se apagam e, pensando bem, nem acendem. As idéias desde sempre acesas...
Deus sabe - aliás não apenas Deus, porque eu, orgulhosa de meu anacronismo, gostava de espalhar aos quatro ventos que jamais aderiria à era do computador. Não. Nada poderia substituir o manuscrito! A letra: o pergaminho de toda uma personalidade para um grafólogo. E para os mais leigos, porém não menos atentos observadores, o retrato de um estado de espírito. A letra trêmula dos suicidas, a caligrafia caprichada das namoradas em papéis de cartas coloridos. Há delas que chegam a fazer desenhos, florezinhas no rodapé, espirais, setas, arabescos, resquícios ancestrais, linguagem das cavernas, pois, como intuíam até mesmo nossos mais remotos antepassados, uma imagem vale por mil palavras.
E há a sensação de poder tocar a lembrança da mão em febril repouso naquele trecho da carta que se sabe de custosa formulação, a reticência, não da frase, mas do pensamento do remetente. A impaciência da palavra escrita com força, a tinta da caneta quase falhando, a ponta deixando apenas um rastro fundo de palavra, como uma boca que se armasse para um grito e, de súbito, emudecesse.
Para os escritores tinha o manuscrito ainda a função documental. Mais do que isso: testemunhal. Não de testemunha, mas de testemunho. O poema assim escrito e palpável é um marco irrefutável do encontro mágico com a inspiração. As imagens estão libertas, libertas do poeta para sempre. Ele, por sua vez, liberto da urgência de comunicar o que não sabe, mas que é a matéria mesma de seu pensamento e de sua percepção do mundo. Às vezes, o poeta volta ao poema, não para lê-lo ou repensar um verso. Volta, na verdade, ao objeto, ao branco enfim sobrepujado da página manuscrita, certificando-se, com a ponta cega dos dedos, o braile sutil da esferográfica, as cicatrizes suaves da silenciosa batalha.
Já o branco da página do computador é na verdade um buraco negro, em que a palavra, mesmo depois de escrita, pode sumir sem deixar vestígios, o que vem muito a calhar para a higiene dos rascunhos. A palavra já não é, então, irreparável. Alguém lembrará de dizer que borrachas desde há muito possibilitam emendas, correções, supressões. Mas a borracha deixa a lanhura da hesitação e do erro. A borracha não era como esse botãozinho de deletar, que permite que se volte sobre os próprios passos. A borracha assinalava o tropeço, o desvio. No computador, depois de revisados e corrigidos os erros por ele mesmo apontados (que agora já nao se limitam mais às revisoes ortogárficas, oferecendo também as gramaticais), parece que o texto já nasceu pronto, perfeito, irretocável.
Não só a possibilidade irrestrita de remissão dos erros, mas a agilidade de dedos que se desenvolve a partir do manuseio diário das teclas, tudo contribui para que não se reflita tanto, é dizer também que não se censure tanto o que se está a dizer. Está-se pensando uma coisa e lic lic lic (os teclados nao fazem tec tec tec como as suas precursoras máquinas de escrever), lá está a coisa escrita, para surpresa do próprio autor. Teriam as letras nascido do branco da tela? Quem nos traíu assim a vigilante consciência? Às vezes, o susto é tanto de ver escrito exatamente o que se pensou em dizer, que o autor superticioso não se atreve a apagá-lo, tomando-lhe por revelações de um oráculo virtual.
Todavia, o que verdadeiramente me converteu à escrita eletrônica foi a possibilidade de escrever no escuro. Sempre pensei - e acho que acontece com todo mundo - sempre pensei muito mais claramente no escuro. À noite, deitada na cama, mãos atrás da cabeça, o teto como uma página imensa, onde cabiam todas as palavras, todos os diálogos, todas as metáforas. E vinha aquela urgência de escrever, de registrar a lucidez desses sagrados delírios de insônia. Mas era só acender a luz para sentir incontinenti ofuscar-se a projeção desse filme interior, e já não se podia ver nem distinguir as imagens que me povoavam.
Por certo que já tinha tentado outras alternativas, como, por exemplo, ter sempre à mão um pequeno gravador e ir ditando o que dizia o pensamento. Esse método se mostrou falho, essencialmente por dois motivos: 1) pela artificialidade de ouvir a própria voz, sem ter interlocutor real a quem dirigir-me e, 2) porque esse pensar alto não permitia a concatenação seqüencial ótima, inerente às idéias escritas. Ainda assim, muito me serviu o gravador para mapear pistas de pensamentos. É que, se não cuidamos, perdem-se para sempre uns insights até aproveitáveis, sabe-se lá, se não eram a solução de todo o mistério.
Somente o computador me possibilitou a magia de escrever no escuro. Mais do que isso: a magia de ver a luz como que encrostada de letras, de ver cada letra como que brotando dessa mesma luz, consumando assim a ancestral metáfora da criação artística. O mundo todo apagado em volta. Só as idéias. Só as idéias acesas.
Isso sem mencionar a internet, a grande rede onde se cruzam os fios de tantos destinos, onde tantos se encontram, se desencontram, encantam-se com o novo, o vário, o mundo; iludem-se com o virtual e deixam-se brincar, por vezes, de traiçoeiros jogos de faz-de-conta. Os e-mails são cartas aladas, permitem respostas imediatas, diminuindo, por certo, em caráter absoluto, o tempo de espera, mas potencializando a carga ansiogênica da passagem dos segundos, somente redimida pelo messiânico alerta "you've got mail". Os chats, um pequenino milagre de simultaneidade, em que a distância não tem império. Alguns programas de bate-papo eletrônico chegam ao requinte da simultaneidade, que é ver o pensamento do outro se construindo letra a letra, palavra a palavra. Vê-se como o pensamento avança e recua, escreve, apaga, conserta o alicerce do raciocínio, seqüestra letras, permitindo, assim, ao interlocutor uma espécie de onisciência sobre a formação da linguagem do outro.
Ah, pianinho de letras, em oração ante às tuas sempre imprevistas panes, imploro: não dê sumiço às minhas palavras! Lança-me rede afora: pescaria ao inverso! Conta-me ao mundo! Impede que eu me apague!
A propósito de apagar, apago-te agora. Acendo o mundo em volta de mim, os móveis do quarto e sua concretude, e me arrumo diligente para dormir. Depois, restabeleço a penumbra e nela me enrosco e me anulo, decomposta de contornos e formas. Só as idéias. As idéias que não se apagam e, pensando bem, nem acendem. As idéias desde sempre acesas...
Minhas idéias desde sempre acesas pela sua chama que me inspira e me tira o fôlego.
ResponderExcluirObrigada por voltar ao teu recanto mais natural, o das palavras.
Beijo, Kk
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAmiga querida que saudade absurda das tuas idéias (acentuo mesmo!) sempre tão lindamente expostas na tela... ai como podes deixar-nos assim sem o delírio das tuas propostas milagrosamente lúdicas, emocionantes!!!
ResponderExcluirVolta sempre e de vez, pois não tem cristão que te leia que não vire freguês!!!
Beijos
Elis