terça-feira, 20 de julho de 2010

O Nome Próprio - Parte I

- Por Roberta Mendes

Não tinha o hábito de comprar o jornal, mas, naquela manhã de estio, que restaurava em sua plenitude as cores da cidade, ela queria se conectar com os outros, pertencer ao mundo, saber dele como de algo que a implicasse, como um herdeiro que tomasse pé dos negócios na fazenda herdada.

O mundo em si não lhe interessou, é verdade. Tampouco a seção de economia. Ademais, parece-lhe que as manchetes têm um tom hostil, ultimamente, em que bem se pode sentir o humor dos redatores, azedando-se, por se verem mensageiros de tantas más notícias, quando o sol que fazia a predispunha a algo tão diverso! Estava propensa ao descompromissado divertimento.

Aos classificados! ─ propôs-se como num jogo, olhando a praia de relance que se lhe escorria pela vidraça do ônibus, no Aterro. Sempre ouvira dizer que há nos classificados as mais esdrúxulas ofertas! E era já com recobrado entusiasmo que examinava o tabuleiro quadriculado de anúncios, detendo-se em um e outro como quem experimenta a textura exótica de uma fruta na feira.

Há de ser assim com todos, mas a verdade é que, sempre que lê alguma coisa, o faz emprestando à leitura a voz do respectivo personagem ou do narrador correspondente. Não é assim quando se lê mensagem de pessoa querida? O pensamento a recita dentro da mente, com a fidedigna inflexão do remetente. Sendo tantos os anúncios e tão vários os objetos ofertados, tinha, em pouco, a algazarra do camelódromo na cabeça, a ensurdecedora ladainha do consumo, disputando-lhe em decibéis a atenção impossível.

Um pouco atordoada, cogitou que se fechasse o periódico como dois intransponíveis portões, restabeleceria em si o silêncio, distanciando-se do mercado de palavras, tanto é que instintivamente alçou um gesto antigo de fechar o jornal, que consiste em, primeiramente, estendê-lo pelas extremidades, sacudindo-o com três curtos e firmes trancos, para refazer-lhe a dobra do meio.

Nisso de estendê-lo é que descortinou sob o polegar impaciente o intrigante gênero de comércio: vende-se nome. Não nomes. Era assim mesmo, no singular. O que já descartava a primeira hipótese que lhe ocorrera de ser, talvez, um serviço de viés esotérico de desenvolvimento customizado de nomes, segundo os rigores da numerologia, para favorecer, aos que acreditam, o endereçamento das bênçãos astrais em prol dos propósitos de cada um.

─ Alô? ─ ligou para o número indicado, por espírito investigativo.
─ Sim?
─ É sobre o anúncio da venda do nome... É o senhor mesmo que é o responsável?
─ Eu mesmo.
─ Pois eu queria maiores informações. Como é que funciona isso? O senhor inventou um nome (aspeou o ar com a mão livre) e quer vender, é isso? ─ A voz traiu-lhe o personagem, galhofeira.
─ Não, não. (respondeu sério). Pelo contrário. O nome é o meu mesmo.
─ Mas como “pelo contrário”?
─ É que não inventei nada. Deram-me o nome. Nunca me serviu. Resolvi passar adiante.
─ Então, se nem é um bom nome...
─ Eu não disse isso, senhora. É um nome que tem uma boa apresentação, está em excelente estado, preservou-o o pouco uso...
─ Mas então...?
─ Afinal, a senhora se interessa? ─ disse enérgico.
─ Veja bem, é que ainda não entendi muito bem a finalidade de comprar um nome, só isso.
─ Ora, senhora, se nem mesmo a senhora sabe o que quer de um nome, acho que essa conversa não vai nos levar a lugar nenhum. Passar bem, sim?

Desligou. O corte súbito da conversa acendeu nela uma terrível sensação de urgência, mesmo porque estava agora mortalmente enredada na teia da curiosidade. Ligou de novo. Ocupado. Mais uma vez. Ocupado. E se comprassem o nome antes dela? Sentiu-se usurpada, dessa usurpação doída e sem sentido de coisa que não se possui, como quando a administradora de imóveis comunica que aquele apartamento de que se gostou muito já foi alugado para outro interessado.

─ Vamos, atenda! ─ Suplicou mentalmente. Agora chamava.

─ Sim?
─ Alô, ai graças a De..quer dizer, o senhor me desculpe, eu não queria tê-lo aborrecido.
─ Ah, é a senhora.
─ Eu não quis ser impertinente (ela nunca queria ser impertinente)...é só que...Bom, vamos ser mais objetivos: e se eu comprar o nome e...e...fizer muito sucesso com ele? Que garantia eu vou ter de que o senhor não apareceria para...para ocupá-lo de novo? E se...e se eu cometesse um crime com ele?
─ Bem, me parece óbvio, o nome seria seu, não é? A senhora poderia fazer dele o que quisesse. Eu jamais iria recobrá-lo.
─ Mas e se... e se eu precisasse, por hipótese, que o senhor aparecesse em algum lugar para, sei lá, representar o nome, o senhor pod...
─ Minha senhora, repito, o que está à venda é um nome, não um rosto. Tampouco trata-se aqui de um comércio de Identidade. Uma vez vendido este nome, eu não poderei jamais representá-lo de novo, nem ele a mim.
─ E como faço com o pagamento?

Horas e uma pequena fortuna depois, via-se, um tanto perplexa, em casa, com o papel dobrado, contendo dentro o nome.

─ Mas como é que eu...?! Papel mais sem solenidade ─ esbravejou. Uma folha de ofício branca, com um nome no centro. Bem no centro. (Pensando bem, havia uma certa solenidade...). E o que diabos eu vou agora fazer com isto?

Talvez por esse impulso mesmo de dar uma utilidade, nem que seja meramente decorativa, a uma coisa que se compra sem necessidade, levantou-se resoluta na manhã seguinte a estrear o nome. Que, por conveniência, era, por assim dizer, unissex.

Ao passar na recepção de seu prédio, o porteiro chamou-a por seu nome antigo. Ela, já adiantada em distância, fez, sorrindo consigo mesma, esforço para não se voltar. Tinha início a brincadeira!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Nine


- Por Roberta Mendes

Quando o filme acabou, tive um impulso de palmas, a que não cedi apenas por tê-lo assistido em casa, sábado à noite, faltando-me álibi para tão solitária catarse. O filme termina em um círculo perfeito: começando. O homem, trazendo a si mesmo ao colo, recrutando o menino interior para ajudá-lo a fazer seu agora difícil dever de gente grande: criar. (Quando é mesmo que tudo se torna uma obrigação?)

O menino é nele o que imagina. Ele: o que viveu. Palco de mulheres, mas será mesmo protagonizado por elas? Sabe-se ao certo apenas que as dirige. Mulheres-esquetes, às quais empresta a câmera do olhar. Por isso o filme é, todo ele, pespontado por um fio teso de desejo.

É por meio do desejo que se apropria delas, fitando-as, despindo-as, vestindo-as com fetiches de curvas, trejeitos, movimentos sinuosos. Impossível vê-las sem desejá-las. Desejar sê-las! Rica fauna de idades e estampas: maduras, louras, jovens, pálidas, morenas, brancas, cacheadas, despenteadas, cabelo em coque, de olhos azuis, negros, castanhos, doces, ardentes, travessos, fugidios, mulheres consumidas, idealizadas: musas.

Cobiço, através delas, o diretor que soubesse tirar também de mim o desempenho perfeito, que me vestisse de espartilhos, brilhos, que me esculpisse a silhueta em contraluz e me jogasse, enciumado e conivente, num mar de braços de outros homens, concedendo-me, ao menos, a forra irascível e despeitada pelo papel secundário em que me mantivera sua pouca imaginação de mim.

O homem e seus andaimes de coisa em construção, ocupado demais em criar-se. As mulheres, coadjuvando-o. Intrigando-o. Inspirando-o. Disputando nele o interesse do olhar, que as define.

Cuidado! Insidioso e sedutor, este filme manipula sensações e sabe exatamente aonde quer chegar: esquadrinha sem pudores o decote descuidado de uma alma, provocando emoções delicadas e insights, por vezes, perturbadores...