sábado, 14 de março de 2009

Por Roberta Mendes

Era feliz. E agora o quê? Tal pensamento pareceu-lhe ter a imobilidade instável das cenas de certos filmes chineses, em que os personagens ficam suspensos por um átimo, medindo-se no espaço, antes de desferirem um golpe.

Sugestionada pela imagem, tentou antecipar o movimento de um seu possível adversário, se é certo que sempre há forças em oposição ao sonho que acalentamos. Ainda assim, sabia-se feliz. E inquietou-se. Intuiu com grande cansaço que tudo era fugidio. Sina dos mortais: temer a perda. Sem falar da preguiça de reconstruir-se, trabalho lentíssimo, a que sempre faltam pedaços...

E sem que nada, objetivamente, se alterasse em torno a ela, sentiu-se infinitamente miserável, a felicidade pulsando-lhe na palma da mão como o coração de um pássaro assustadiço, a que não é possível proteger para sempre. Por toda parte perpassava um agouro de predação.
...Ou foi só a lufada de vento que lhe enregelou a face?

sexta-feira, 13 de março de 2009

Sem Roteiro ou Direção: A Personagem


Por Roberta Mendes

- Corta!

Fosse ela o diretor, teria a cena se interrompido com naturalidade, os figurantes retomando docilmente suas posições iniciais, sem o olhar de estranheza que lhe lançou o rapaz, levantando-se para fazer soar o aviso sonoro de requisição da próxima parada (logo ela, que detestava atrair para si a mínima atenção).


A verdade é que também ela se surpreendera com a própria voz, mas, como a lágrima ainda insistisse em embaçar-lhe a visão, gemeu para si mesma, com o cuidado de ser inaudível: corta...!


A voz de comando se desfizera inteiramente, cedendo lugar a um tom quase de súplica. E se a lágrima ainda não rolara pesadamente pelo seu rosto era somente porque tinha cílios longos, o que aumentava em preciosos milímetros a distância que a separava (à lágrima) de seu desamparado salto para a protuberância das bochechas.

Antecipou-se à queda da lágrima, enxugando-a com a ponta implacável de um dedo, ao mesmo tempo em que se virou, sorrindo desconcertadamente para seu novo vizinho de assento, dizendo-lhe, como quem se justifica “imagine!”. Este, que estivera absorto, ouvindo música todo o tempo, pensou que tivesse chegado seu ponto, fez menção de levantar-se para lhe dar passagem. Ela, atrapalhando-se mais, apressando-se em esclarecer: “não, eu não...não foi nada”. E voltou-se rapidamente para a janela, recostando-se na cadeira com grande alívio, rindo-se um pouco de si mesma: achar que perceberiam... “Imagine!” - Disse já sem sobressalto, convencida de sua invisibilidade.


E se pôs a observar seus próprios pensamentos. Os quais, por se sentirem observados, adquiriram, instantaneamente, uma certa solenidade e ficaram organizados e limpos como o caderno de uma menina aplicada. Começou então a fazer listas, listas de muitas coisas:
- das pessoas que lhe foram mais importantes nos últimos anos;
- com quantas delas ainda mantinha contato;
- quais as pessoas com quem acha que ainda manteria contato nos próximos anos
- ...


E como a garganta se contraísse ante a uma lista e outra percebeu que ela ainda estava lá: a emoção. Mas por quê? Um dia tão comum...! E a palavra “comum” pensada assim, inadvertidamente, estreitou-lhe o estômago, quase precipitando-lhe novamente às lágrimas. Arre! Que campo minado são os sentimentos em dia de chuva, concluiu, recostando-se novamente no espaldar da poltrona, ajeitando as costas, como quem procura aconchego em atitude de clara cumplicidade para com sua, até então, inesperada sentimentalidade.

Paciência! – disse, então, soltando o ar pelo nariz. E o vizinho, que se organizava para deixar o coletivo, olhou-a de novo, de relance, com ar interrogativo, o que a fez afundar-se ainda mais em seu assento. Ah, o patético teatro da solidão nas grandes cidades! E abriu os braços (pateticamente) em desalento.


Não fosse o caminho tão longo...! E não sabia se falava efetivamente da distância ou se fizera involuntariamente uma metáfora. Não tinha mesmo jeito: estava significativa. E, veja só, justinho hoje não havia qualquer esperança de interlocução...! Talvez por isso as palavras lhe escapassem ao acaso, pontuando o diálogo interior, interpelando, involuntariamente, os passantes. Cada um com seu artifício...assumiu. E lembrou-se com amolecida ternura (quase mesmo piedade) da senhora dos gatos. Senhora dos Gatos! - experimentou a expressão, isolando-a do contexto. E, dita assim, mais parecia um título nobiliárquico, o que ainda mais aumentava sua piedade, ao lembrar-se da cena.

É que estava, certa vez, sentada nos degraus da escada que dá para a rua estreita e suja de seu trabalho. Aguardava o táxi (também naquela ocasião chovia) e ela havia se concedido o pequeno luxo burguês de aguardar o táxi vir buscá-la à porta (inóspita) do prédio (inóspito). Sentara-se no degrau e adquirira ares de planta decorativa (também ela temia ser interpelada pelos passantes...).

Dado o trânsito de pessoas que saiam do prédio sem cumprimentá-la, chegou mesmo a desconfiar que seu mimetismo, de tão perfeito, a fizera cinza como as paredes do prédio. Mas eis que viu o felino se aproximar com ar expectante, olhando com grande interesse para o hall de entrada, a patinha suspensa à frente (então também disfarçam os felinos?) como se a fosse lamber, mas desistisse. Chegou-se mais próximo à porta, cautelosamente. O corpo protegido ao longo do muro, apenas a cabeça em atitude curiosa, espreitando. E foi então que viu sair a...a... a Senhora dos Gatos, pois!

Trazia consigo uma bandejinha com ração, que - é preciso dizer - colocou com certa solenidade ritualística no outro lado da rua. O gato se aproximou da bandeja, não da mulher. Mas ela o olhava com desprendido encantamento, e lhe falava coisas carinhosas, a voz farpada de fumante aveludando-se com esforço.

Então voltou para o hall de entrada e deu instruções aos porteiros sobre como alimentar os gatos no fim de semana, deixando aos cuidados de um zelador um grande pacote de ração, mostrando-lhes a medida do que devia ser servido a cada dia, indicando com as mãos os pontos da rua em que a bandeja deveria ser colocada, afinal, em dias de chuva, tinha o bichano que driblar as poças d’água da rua de calçamento irregular.

Os outros passavam apressados. Despediam-se (se tanto) com um meneio de cabeça e sumiam na curva da esquina, com grande pressa...se a aula ou o amor, certo é que algo os esperava. Mas a Senhora dos Gatos não tinha pressa alguma. Acendera já o segundo cigarro. E era magra, como se tivesse tido o cuidado de se manter minimamente atraente, para caso o acaso de um caso...

...E lá estava ela de novo ‘personageando’ os circundantes, que mania! Que faria a Senhora quando se despedia dos gatos que lhe emprestavam o aposto? Moraria numa ruazinha transversal do Catete, prédio antigo, sem elevador? Imaginou-a subir cinco lances de escada, parando de quando em quando para puxar o ar, sofregamente. Pararia à porta de seu conjugado, bateria à porta antes de abri-la, algo assim como um ritual de si para si mesma, já que era certo que ninguém abriria. Talvez para dar tempo aos fantasmas de se esconderem... Não ficava bem irromper assim nos aposentos alheios...Mas se era dela a casa!!! Saberia a Senhora dos Gatos ser senhora também de sua casa?

A pergunta voltou-lhe no espelho como um bumerangue, despertando-lhe do transe. É que ela mesma já chegara em casa, levada sonambulamente pela esteira da digressão com a história da Senhora dos Gatos. Nem se dera conta... O marido estava fora, a negócios, de modo que, quando abrisse a porta, teria ela também uma casa inteira para ocupar com seu pouco corpo de muitos sentidos. Ah, que a música fizesse as vezes e fosse espantar as presenças invisíveis ou as ausências visíveis dos demais cômodos!

Sentada ao sofá, as luzes ainda apagadas, crescia. Crescia no prazer de estar só. Crescia-lhe o prazer de estar sendo. E, em silêncio, com a mão ao lado do colo, segurando o invisível cetro, reinava soberanamente sobre a solidão do apartamento, aguda e sólida como o rochedo do corte do Cantagalo.

- Corta!

quarta-feira, 4 de março de 2009

Germiniscências

- Por Roberta Mendes

Saiu da loja de perfumes, aproximando suavemente o pulso do nariz, para sentir-lhe a fragrância. A mão pendia-lhe oblíqua, com as costas voltadas para fora, como na pausa coreográfica de uma bailarina, revestindo de elegância o distraído gesto. Sim, havia qualquer coisa nela que dançava! Seu caminhar tinha a leveza volante de um invisível voil, vinham e iam as ancas em balanço pendular, cadenciadas.



Seria a mulher a rosa que se cheira? -brincou-lhe o pensamento a propósito da estampa floral que vestia. Tudo nela exalava um aroma frutado de flor fecunda, doce, doce, olhos dulcíssimos, rebrilhando úmidos como o vértice de um hibisco. Apertou o ventre com as mãos em concha, como a proteger um enigma e atravessou a rua, o sinal ainda aberto aos carros, em atitude desafiadora, só para vê-los curvarem-se sob o comando de uma súbita frenagem à altivez da vida.

Gostou da idéia de que as coisas em volta dela, a partir de então, desacelerassem. Havia mesmo mais silêncio, como quando cai a neve e suprime-se o barulho dos passos.

Deixou-se tomar pela visão íntima de uma paisagem toda branca, a que associava, paradoxalmente, um calor de Glühwein, bebido em pequenos goles - o vinho que se serve quente e condimentado nas festividades teutônicas do Advento. A evocação inebriante do cheiro macerado de cravo, uva e anis, levou-a a fechar os olhos, inalando gulosamente o ar até o limite dos pulmões, retendo um pouco a respiração, como a perscrutar vestígios das notas exóticas do aroma dentro de si.

Levada pela correnteza das associações sinestésicas, sintetizava em sinapses rápidas experiências diversas, sensoriais ou não, resultantes do intelecto.

E tinha ainda a sugestividade da palavra “Advento”, cujo conceito fulminara-lhe sob uma conotação inteiramente nova...

Os parênteses se abriam em sua mente com o poder de multiplicação de bonequinhas russas, as memórias saindo umas de dentro das outras, em uma infinita cadeia remissiva, um fio contínuo de histórias que era, no fim das contas, o que lhe arrematava a tessitura do ser.

Munia-se, inconscientemente, de referências, tantas quantas possíveis, sobre o processo de viver: suas sensações, suas razões, suas implicações, seu sentido.

Mais do que nunca precisava entrar em contato com a natureza das coisas, sistematizar o precário saber, como o pássaro laborioso a construir com fragmentos a dimensão imaterial do ninho, pois suspeitava estar incumbida de transmitir, mais do que a realidade do corpo, um modo de estar no mundo, de relacionar-se com ele.



...Os que julgam que a criação é forma apenas de forjar a criatura, desconhecem a carga transformadora do ato de criar, donde o próprio criador se origina. Origens...Origem. A palavra escancarou-se como a boca de uma baleia, tragando-a para dentro. (A lucidez nela aguçou as retinas, tentando recuperar a nitidez dos contornos ao adentrar o escuro mistério.)




As possibilidades, variáveis impossíveis de se controlar… controle, ilusão ingênua de que há razão para tudo que se passa por aqui. Não necessariamente, não precisamente, não. A única certeza que mantém sua credibilidade inabalável é a de que tudo muda o tempo todo... e há as virtudes, as doces virtudes que acabam por materializar, nem que seja no papel um diálogo possível entre o desejo e o que se coloca frente a ele.

Há que se ter coragem para deixar a alma olhar tranqüila através das janelas dos olhos, caso contrário, o entorno transforma-se em cenário pobre e tedioso de tanto que a alma está, o tempo todo aflita, olhando apenas pela fresta da janela e de soslaio!!!

Elisangela Batista Barbosa