terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Encantada


Encantada, lia sem descolar do rosto o sorriso condescendente de quem sabe exatamente do que trata o outro naquelas linhas traçadas com capricho, o pensamento ainda garranchado cheio de sentimentos tumultuados. Era o texto como um quadro que todos desenhavam, mais hora menos hora, pintado com a descrição das primeiras descobertas, contendo as confusões de quem acaba de chegar, as desilusões primárias, os questionamentos do óbvio sempre presente, mas nunca dantes visto.

Trilhava ela o caminho proposto pela outra, parágrafo à parágrafo, sem respirar, sabendo que qualquer reação que tivesse seria tomada por sinal de algo, quando nada havia a assinalar a não ser o que já se desenhava ali. Então, o que achou? Piscava, os olhinhos pequenos e despertos.


Achava de dar-lhe um abraço forte de irmã para, quem sabe, passar para ela toda a força resignada de quem já gastou aquelas trilhas e se perdeu e andou em círculos e caiu e levantou e enfim seguiu adiante! A força renova-se como a fênix... mas ela ainda não sabia.

Achei bom, está ótimo! Tem certeza? Tenho, está bem escrito, claro e honesto. Isso sim, bem honesto mesmo, abri meu coração! E dizia assim com o punho cerrado sobre o peito. Sorriram, um sorriso sereno e amoroso e um tenso, de lábios apertados, respectivamente.

Você acha que eu devo mandar? Ora, mas não foi escrito justamente para ser lido? Sim. Então, já nem é mais seu querida, já é do outro. Você acha? Era como assistir aos primeiros passos... eram os primeiros passos! Acho, acho que deve mandar, como se estivesse a liberar um passarinho da gaiola.

Com essa imagem assim colocada os olhos dela marejaram, baixou a cabeça ruiva, cheia de cachos grossos e caraminholas. Dobrava o papel com gestos de mágico que faz desaparecer. Você já mandou cartas assim? Deus, foram tantas escritas e tão poucas enviadas, foram tão espremidas e extraviadas, algumas nunca respondidas, foram simplesmente ignoradas...Sim, já mandei cartas assim, claro, há vezes em que coisas ficam melhor colocadas no papel, sabe?

É, acho que sim. Mas não sei, mas vou mandar assim mesmo. Sorriu.

Um não saber infinito, uma ausência de fronteiras, de limites, uma constelação de sentimentos que experimentados com paixão rendiam era num outro Halley, rasgando seu céu, explodindo afinal em mil impressões e nenhuma certeza.
Elisangela Barbosa

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Aspirando zabumbas, tambores e triângulos, sentindo a brisa da terra que nos gerou e alimentou com sua poeira carregada de histórias que nos sacudiram o corpo e enxovalharam a alma, transportadas pelo som para nossas origens mais primitivas e viscerais trocamos:

De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Amiga, que coisa incrível! Estou bem aqui amando o cordel bem todinho ele… mas quando entra na música cinco e minhas raízes se sacodem, num manifesto de pertencimento, arregalo os olhos e procuro na palavra escrita uma explicação para tamanho rebuliço... quando descubro: é o momento do chamado dos santos africanos... ah, entendi!
De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Zabumba zunindo no colo de Deus… ai.... que tortura tudo isso dentro da imobilidade necessária neste lugar!
De: Flor do Crato
Para: Filha das Gerais
Assunto: Chamada dos Santos Africanos

Ontem era eu a dançante estátua, congelada em meus movimentos...a lágrima nem ousando molhar o chão seco, duplamente seco, porque infértil daqui... No Nordeste, pelo menos, o seco é latência. Aqui é suspensão (!)

De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
O que é o poeta Zé da Luz?! O que é o purtugûez correto dele???? MEU DEUS??? E esse é um brado louco querendo a liberdade!
De: Flor do Crato
Para: Filha da Gerais
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Vejo que te arrebatou!!! Que alívio...! Minha nordestinidade encontra ecos nas tuas geraes....!!
De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Ah se encontra, a terra ecoa em quem é de terra sem que o nome dela muito importe... essa apropriação do idioma me deixa feliz, me soa como galhofa amiga de quem é de casa, de quem é íntimo... me lembra vovô, que sempre que se surpreendia com algo dizia de rabo de olho, meio riso num canto da boca, mineiríssimamente: “mai eu vô ti falá contigo, ói”. No fim das contas acho que ele também era poeta.
E ele fecha a porta no fim, como quem tira de mim o brinquedo mais querido dessa hora…
De: Flor do Crato
Para: Filha das Gerais
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Ah, a liberdade de dizer as coisas do interior (e olha aí o trocadilho de novo!) se traduz numa quase reinvenção da língua! É outra iconografia, são outras imagens as evocadas, são outros nomes para as mesmas coisas. Nomes que não se gastam, pela sua incorruptível espontaneidade. São todos poetas, eu acho! Veja o velho Mané Preto, neto de escravos no Ceará, que morava numa fazenda chamada “Direitos” (ai ai...) e que disse, para meu deleite, quando perguntado do que mais gostara em Fortaleza, que tinha sido daquele portão que se abria “por natureza”!!! Isso nos põe imediatamente reconciliados com o automatismo dos mecanismos! Já não via os portões automáticos com os mesmos olhos e, sim, com o carinho do mistério que tinham tido para quem ainda tinha olhos de ver o milagre das coisas. Afinal, já alertava Drummond:
“As coisas, que tristes são as coisas consideradas sem ênfase!”

Adoro as hipérboles do meu povo, a ligação direta para com a carga dramática e cômica de tudo, a síntese dos contrastes, a capacidade do riso e do choro, do choro gargalhado, do riso chorado, a capacidade de ter o coração úmido e fecundo na terra esturricada! Meu povo é da linhagem dos cactus, sobre os quais se lê assim na enciclopédia:

“Seus caules expandiram-se em estruturas suculentas verdes perenes contendo a clorofila necessária para vida e crescimento (...)”
Mais do que defesa, o espinho é um disfarce para a coisa toda tenra de que, intimamente, consistimos... Nós, do elemento terra, nós, do barro de existir, nós com as raízes enterradas até a seiva oculta da vida!
De: Filha das Gerais
Para: Flor do Crato
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Isso tudo lá no blog, planto eu ou planta tu? ;O)
De: Flor do Crato
Para: Filha das Gerais
Assunto: Chamada dos Santos Africanos
Plantações à parte, colheremos juntas e é isso que importa ;-)