sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Vegetativo

Por Roberta Mendes

O dia gastou-me até o caroço de mim. O tempo e suas mandíbulas de ponteiros roeram-me ainda o hermético núcleo, empurrando-me contra o duro palato, para, então, girar-me contra a língua espessa das horas à cata de alguma sobra nas reentrâncias. Julgando que me esgotara, deitou-me fora, farejando os restos com o desdém dos cães às tigelas vazias.

...Mas o caroço é a astúcia das coisas, resguardando-se...

Partisse-me o grão, aí sim, mordia-me em cheio o ser. Na porção-grão irredutível de mim, germino a lenta reinvenção da força. Afinal, a palavra de ordem de toda semente é vingar...

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Suas notas me remetem a...

Desfruto agora de um momento raríssimo de se viver nesses últimos tempos... intervalo! Estou em um intervalo!!! Engraçada essa sensação de lugar para descrever um tempo, estou em um intervalo. Para aqueles que já esqueceram, intervalo é um tempo que se situa entre uma coisa que aconteceu e outra que está para acontecer (acrescentem outras definições para intervalo os que puderem!).

Desde a modernidade, intervalos são cada vez mais raros uma vez que, existindo um tempo entre uma coisa que terminou e outra que vai começar, costuma-se fazer aquelas coisas para as quais não sobra tempo algum. Ocorre que nesse intervalo em especial me encontro sem nada para fazer... então volto-me ao caro exercício de observar e transcrever o que minhas lentes captam, para continuar treinando a caligrafia...

Eis que, de repente, me deparo com uma coisa incrível, que a maioria de nós já viu, mas me pergunto se reparamos...um balé, estava acontecendo bem diante dos meus olhos o balé das canetas rodopiantes!!! As pessoas rodavam canetas dos mais vários tipos por entre os dedos, e não sei se era o movimento hipnotizante das canetas ou o desconforto de um momento onde o ser se vê obrigado a – das duas uma – estar consigo e consigo mesmo ou estar com o próximo, que nesse caso está à distância de uma cadeira.

O fato é que o exercício da dança das canetas parece ter congelado os olhares...e surgiu então um outro intervalo, o intervalo entre a caneta que roda freneticamente e o fazer algo com o breve momento em que não se tem absolutamente nada prescrito, pré-estabelecido ou determinado para fazer.... mas o que? Deus o que faremos se ninguém nos disser o que fazer?

Alguns tentaram, eu vi, posso servir de testemunha, tentaram estabelecer contato com outros através de tímidos desvios dos olhos das canetas para o próximo, mas este já tinha sua própria caneta e voltávamos à estaca zero!

Há que se levar em consideração que era uma sala de aula (e não, salas de aula como aquela não intentam propiciar qualquer tipo de interação), há que se considerar que já era noite e que a maior parte dos indivíduos que ocupavam aquela sala tinham atrás de si um dia inteiro, cada qual com a sua porção de horas, mas ainda assim admito que me arrepiou o frio da distância entre as pessoas.... Curioso, uma distância (enorme) dentro de um intervalo (tão curto)... isso me remete a algum conhecimento que devem ter plantado dentro de mim mas que tenho a impressão de não me pertencer... tem alguma coisa que ver com matemática? Não, não, era física. Era?

E agora? Agora são os números plácidos dentro dos relógios nervosos, devidamente amarrados aos pulsos cerrados, aliás, alguém sabe me responder por que razão no mundo cerramos os pulsos para ver as horas?!

Agora, agora seremos todos salvos! Não criemos pânico... o professor acaba de entrar e ouvi-se o uníssono dos suspiros de alívio... o intervalo acabou!!! Está restabelecida a ordem e finalmente voltaremos a fazer...
Elisangela Barbosa

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Notas distraídas

Enfim, uma maneira confortável de escrever: reclinada sobre o sofá, joelhos flexionados, improvisando encosto ao laptop, pousado sobre a barriga como um caderno de anotações - sinônimo a que, aliás, faz jus.
O notebook e sua encadernação de duras capas está aberto, ofercendo-me o fecundo ventre. A face branca da folha virtual desfraldada à altura de meus olhos. Escrevo sem olhar-lhe as teclas e lendo, assim, com espanto bíblico, o que se escreve à minha frente, sem que saiba a mão direita o que digita a esquerda, como se o fato de eu não as olhar enquanto escrevo, tornasse-me as mãos alheias e, por isso mesmo, mais livres.

Seremos sempre mais livres enquanto distraídos de nós mesmos?
Pelo menos é assim que cantarola, sem pudor nem afinamento, a funcionária da limpeza, quando entra no elevador, mesmo se cheio. Os olhos, trá-los sempre fixados, não no chão, mas nos espaços vazios entre as pessoas, o que, dependendo da dolência da música, confere-lhe, convenhamos, uma risível teatralidade.

E porque não nos fite e não nos surpreenda jamais, fitando-a, é que canta a funcionária da limpeza, protegida sob sua presunção de invisibilidade, sem dar por si, ou, pelo menos, sem dar-se demasiada importância, motivo pelo qual passa não-detectada pelo crivo de qualquer possível auto-censura.

Há, certamente, dentre os que ali vamos gogós engravatados que bem gostariam de fazer-lhe coro... Mas seria preciso afrouxar a gravata, o que traz, por si só a consciência de se ser alguém, com uma determinada ocupação, em razão da qual se tem que trajar gravata, mesmo em dia tão abafado (maldito trocadilho!)... E todos sabemos que não há nada que anule mais a voz de uma pessoa do que um nó na garganta.

Desço do elevador, aprisionada, nó na garganta pela música que não cantei ("olha a voz que me resta!"). Caminho em direção à saída (há saída?), enquanto a música segue ("olha a veia que salta") cantando-se / calando-se na minha cabeça:

“(...)Por favor,
Deixe em paz meu coração(!)”...

- Roberta Mendes

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O Banho

- Por Roberta Mendes

Críticas haverá, e com razão, sobretudo dos ecologicamente engajados, à minha irredutível confissão: eu adoro tomar banho! Desapressadamente, bem entendido. Não foi por falta de conscientização ambiental, é preciso que se diga. Em vão a mãe onisciente, dando pela minha prolongada ausência nos espaços comuns da casa, protestava ante à porta do banheiro:
- Minha filha, a água do planeta!

E com isso cumpria a missão milenar da maternidade de nos infligir, em tantas nuances quanto possível, a irremissível culpa cristã. De modo que não há a quem mais responsabilizar, senão a mim mesma, por esse pouco comprometimento com as reservas líquidas da humanidade. Se serve de desculpa pública, é das poucas searas em que permito que o hedonismo sobrepuje o sentimento de dever moral Também aqui haverá protesto dos que me conhecem bem... Ignoremo-los em nome da fluência narrativa...

Todos os que tivemos, na infância, que dividir o quarto com um irmão, por maior comunhão afetiva de que se revestisse o fraterno convívio, todos os que fomos criados nesse gênero amputado de casas que são os apartamentos, casas sem quintal ou jardim que nos servisse de esconderijo para os rompantes de evasão familiar, principalmente se éramos de índole mais retraída ou contemplativa, todos, acredito, ansiávamos pelo momento do banho, para estarmos, finalmente, a sós conosco mesmos. Pois o banheiro era o último bastião da privacidade, o lugar em que estávamos legitimados a ficar de portas fechadas, a salvo, portanto, da implacável onisciência materna de que falávamos.

Ali não entravam os deveres da escola ou o invasivo olhar do outro que, mesmo de forma sutil, tantas máscaras nos ía vestindo ao longo do dia. "O coração é teu, mas o semblante é do próximo", dizia o pai, o que era uma maneira mais poética, certamente, e não menos eficaz, de dizer "engole o choro".

Uma vez no banheiro, portanto, tirava o sorriso como uma grossa maquiagem e, se era dia de chorar, chorava, diluída no fio contínuo da água que me lavava de todos os disfarces.

Se bem que não só a tristeza se desafogasse no banho... Ali tinham espaço alegrias que também não convinham ser exploradas publicamente. Eram alegrias do corpo, descobrindo-se (ah, tudo ali eram rituais de despir-se). De modo que às vezes, dava-se justamente o contrário, isto é, despida a máscara de seriedade, tomava lugar o sorriso malicioso, lembrando do beijo que me roubara o primo, do canto dos lábios, na frente de todos, mas sem que ninguém percebesse, embaralhado nos cumprimentos de praxe. Estes primeiros embates com a astúcia masculina intrigavam-me por horas, pelo poder mobilizante que me faziam adivinhar da natureza feminina sua vocação de presa.

E olha que, naqueles tempos, os banhos eram sempre frios, que não tínhamos, por ser absolutamente desnecessário, calefações outras que não o inclemente sol alencarino. A pele adolescente, retesada de juventude, como a carne branca da lichia explodindo em sumo ao menor contato com qualquer (ainda que delicado) apetite, vivificava-se inteira sob o jorro fresco da água, acometida de arrepios, potencializados, possivelmente, pelo transtorno dos hormônios.

Ai, sentir-me escorrer os cabelos como nas chuvas da infância! O banho eram as chuvas da infância, e a cachoeira, e qualquer coisa que desencadeasse essa memória genética de estar em interação com o elemento líquido de onde emergimos. Daí, talvez, a renovação de ânimo com que saía, cabelos molhados, do banho, como que renascida. E predisposta aos grandes acontecimentos. Pois o banho pontuava o dia, precedia o encontro com os amigos, o passeio na praça, o olhar do garoto de que se gostava, a entrevista de emprego. O banho precedia também, e invariavelmente, a viagem.

Depois, como quase tudo, o banho rendeu-se ao utilitarismo da rotina, reduzindo-se drasticamente em duração, para júbilo dos ambientalistas, e, certamente, em prazer, para lamento meu. Mas, sempre que posso, sempre que se abre no dia uma fresta para a possibilidade de fruição, lanço-me sem culpa ao antigo ritual, apagando as luzes da casa, providenciando no quarto contígüo alguma música e fechando, deliciada, a porta atrás de mim, que é uma forma de me delimitar, enquanto indivíduo, do resto intruso do mundo. Então ligo o chuveiro, fazendo-me farta chuva, que durará o tempo que leve uma tempestade, até que de mim se tenha vertido a última gota - impossível definir se me lavo ou se transbordo de plena nudez, de toda a nudez possível, felicidade orgânica, realidade imediata do corpo!

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

o dia

Farto, um dia farto de informações. Determinou-se que hoje seria dia de sopa de entulho (aquela que tem de um tudo dentro) e às colheradas, que pingavam antes de chegar à boca o caldo grosso e suculento das emoções ali contidas, o espírito irrequieto foi alimentado.

Tinha fome de fato (e de fatos!), tinha fome sempre, um desejo renitente de compreender, de experimentar, de saber... e como os desejos mais verdadeiros tendem a se realizar, a fome hoje cedeu à dieta pesada das emoções mais dispares e intensas que compuseram a mesa.

Começando já pela metade ela continuava tenaz no seu objetivo de ordenar o mundo, tarefa que vem lhe consumindo desde tempos imemoriáveis, mas que é preciso! É preciso limpar, renovar, organizar, livrar-se do que julga não ser mais necessário. Tal qual uma formiga laboriosa, incansável, move de um lado para o outro caixas, papéis e palavras. Sim, finalmente poderá livrar-se de todas aquelas palavras que sequer lhe pertenciam para acomodar outras, quem sabe, que lhe caiam bem.

Nesse desfolhar infinito que servia à verificação do que poderia ser pertinente ou não, do que poderia ocupar ainda lugar em seu espaço, ela re-descobre – fingindo bem para si mesma um certo espanto – em meio aos escombros de textos amarelados um tempo em que era outra e nem sabia ainda o que queria ser quando crescesse. Pois eis que lá se encontrava um lugar ao qual pertenceu durante um tempo, em um espaço onde cabia (ao que parece) sempre dois.

Diante do calor insuportável que fazia lá fora e da nostalgia sufocante que começava a abate-la cá dentro, achou uma folga de suas arrumações para a merenda e pôs-se a cozinhar. Cozinhou, ato que continha o prazer das brincadeiras de menina com suas panelinhas multicoloridas, cozinhar pressupunha concentração nos sentidos de maneira que os sentimentos podiam descansar um pouco. Alívio!

Comeu, choveu.

Há uma visita feliz que será feita ainda hoje. Enquanto percorre a distância entre o eu e o outro, pensa carinhosamente, “agora quem vai visitar sou eu”! Sorri, se perde, aliás, caminhos foram feitos também para serem perdidos, e encontra por puro capricho um fantasminha camarada.
Susto!

Joga os dados. Caminhe duas casas. Pára um táxi cujo motorista afirma com veemência “minhas pragas pegam!”, chega ao seu destino tensa e aliviada (paradoxo que se retro-alimenta...). Abre-se então o portal da troca e as possibilidades são elevadas à sabe-se lá que potência.

O acolhimento da amizade suaviza e fortalece, prepara tudo para que se deleitem as amigas com o desfile inesgotável de histórias, questões, sentimentos, impressões, desejos, frustrações, poesias, experiências, músicas, filmes, retratos (falados e impressos), gargalhadas, dores, inclusive as de saudades, e outras também. Enfim, uma infinidade de coisas e não-coisas absolutamente imprescindíveis para que o movimento não pare.
A despeito do calor, hoje foi dia de sopa, mas não foi qualquer sopa, foi aquela que tem de um tudo dentro, aquela que alivia a fome e fortalece, que a prepara para a continuação da caminhada!
Elisangela Barbosa

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Falando nisso...

As vibrações de um dia azul que nasce depois de muita, muita, chuva, entram por olhos e narinas despertando no corpo o desejo da renovação… o corpo repassa o choque ao espírito, que acorda. Espreguiça forte. Sorri com todos os dentes de quem celebra. Levanta-se, e acabo por ser obrigada a escrever!
Sem saber se faço bem ou mal, vou fazendo!

As palavras são os tijolos amarelos que preenchem a estrada por onde meu espírito trilha seu caminho de dentro para fora, tornando inteligível o mundo de fora para o mundo de dentro e devolvendo o mundo de dentro ao mundo de fora. Feito aquele espelho do conto de Machado, nosso bruxo curandeiro, que as manipulava feito antídoto do veneno que lhe inflamava o peito e as vistas - pois como observava o Machado, era quase antropologia aquilo!

Ordem, os nomes das coisas (concretas ou abstratas) são absolutamente imprescindíveis!

Descrever imagens e contornos cujas cores serão dadas pelos que lêem, o prazer de provocar sensações, o saber que o outro, por vezes desconhecido, reagirá e responderá às palavras lidas, ainda que involuntariamente, pois as palavras perpassam o corpo. Bolindo desavergonhadamente conosco, rindo das reações que causam posando ali, estáticas no “papel”, mas dançando soltas e loucas, feito os piões dos meninos dentro da cabeça dos outros...

Há o prazer de fazer aos outros e o prazer de fazerem conosco. A palavra, especialmente a escrita, torna possível uma das brincadeiras mais legais de todas, a troca, e também a troca de palavras! ;O)

Falando nisso... "comigo não tá"!



Elisangela Barbosa

sábado, 17 de janeiro de 2009

Anotações no Avião

Por Roberta Mendes

Dizem que, por volta dos cinco anos de idade, talvez por se dar o início de uma estruturação mais consciente da memória, a criança atribui a alguma coisa vista uma qualquer valoração fundamental, que a impelirá, por toda a vida, a tentar nela, de alguma forma, tomar parte.

Conheço alguém para quem essa visão foi o vôo colorido de uma asa delta, bisbilhotado do noticiário noturno, quando os pais julgavam que dormia. Aos trinta e poucos, o menino, finalmente, se “brevetava“ para o sonho.

Sei de outro que teria ouvido anunciar-se a Guerra pelo rádio, na voz solene do repórter Esso. Também este, anos mais tarde, foi locutor e, mesmo depois, quando seguia, por escolha própria, outra carreira, mais segura e conveniente que a primeira, era atormentado pelo desejo recorrente de voltar a atuar no rádio, obcecado pela fatídica fulguração dos cinco anos.

Quanto a mim, o objeto do meu primordial deslumbramento calhou de ser a palavra escrita.
Primeiro cobiçava a leitura dos adultos, aquele mundo paralelo para onde fugiam, sem, no entanto, deixarem de estar presentes. De que ririam? Pelo que suspiravam, afastando, às vezes, o rosto do livro com olhar ausente? De que sofriam, se os encontrávamos imediatamente refeitos uma vez cerrado o livro?

E tinha a máquina datilográfica do meu pai, em seu metralhar constante, entrecortado de precárias tréguas. (Mais tarde eu aprenderia que era, precisamente, nestes silêncios que se travavam as piores batalhas). Depois o pai retirava o papel pontilhado de tipos impressos, como o dos livros, lia-o algumas vezes, colocava-o num envelope e o enviava ao jornal. Desconfio que eram longas cartas de náufrago que lhe chegavam à superfície do jornalista nele submerso.

Antes mesmo de aprender a escrever, desenvolvi uma relação profunda e delicada com as palavras, manuseando-as com cuidado, buscando delas o sentido arredio, a compreensão exata. Que grande efeito exerciam sobre mim! A partir da alfabetização, não havia para mim melhor presente, fosse de Natal ou aniversário.

O melhor dia das férias era o das expedições organizadas por nossos pais às livrarias do centro, quando podíamos, minhas irmãs e eu, escolher os livros que bem entendêssemos. Tal era o meu fascínio pela leitura que, em certa ocasião, quando tive que passar uma semana em casa, alquebrada de febre pela caxumba, meu pai, vendo-me abatida pelo terrível tédio, trouxe-me no fim do dia um romance, intitulado “O Quarto Mágico”, que versava, justamente, sobre um menino que não podia sair da cama e descobria, a partir disso, o inesgotável passatempo da imaginação. Que susto! Então os livros podiam ser sobre nós? Ah, eu bem queria escrever um livro sobre as pessoas!

Antes de começar o ano letivo, com a satisfação de organizar o material cheirando à novo dentro da mochila, eu me comprazia em folhear o livro-texto de Português, antecipando as lições de interpretação. Paulo Mendes Campos, Moacyr Scliar, Ruth Rocha, Rubem Braga: estavam todos ali.

Ali também tive meu primeiro contato com Drummond. As palavras tatuaram-se em mim, irresistivelmente, tão logo sobre elas corri os olhos extasiados:

“De repente você resolve: fugir.
Não sabe para onde nem como nem por quê
(no fundo você sabe a razão de fugir; nasce com a gente)”.

Ai, a cumplicidade sussurrante de um parêntese! Eu também queria escrever entre parênteses! E por pouco não deixava as redações da escola inteirinhas entre eles, só para ter o gosto de me revelar daquela indireta maneira, toda em segredo.
O feitiço estava feito: eu queria ser escritora!

Depois me disseram (ou eu mesma me disse) que não era bem assim. A profissão de escritora parecia por demais impalpável ante a concretude irrecusável das carreiras tradicionais: médico, engenheiro. Advogado. Esse, pelo menos, tinha mais a ver com a palavra, negociei comigo mesma, timidamente.

Por me serem atribuídas incríveis habilidades de observação e entendimento das questões humanas - pelo menos das que tínhamos aos dezesseis anos de idade - cheguei até a cogitar estudar psicologia, mas, naquela época, não sabia direito o que faziam os psicólogos. Ouvir os outros? Quando o que eu queria mesmo era e-s-c-r-e-v-e-r os outros!

Imagino que mais ou menos assim ocorra com quase todo mundo: um dia, quando damos por nós, nos descobrimos morando num apartamento confortável, decorado ao nosso próprio gosto, num bairro conceituado de classe média. E isso é bom, embora não necessariamente reconheçamos a trajetória que nos trouxe até ali. Em que curva do caminho terá ficado o menino que nos trazia pela mão?

Que diria de mim a menina que fui em meu disfarce de advogada? Então me ocorre que, provavelmente, não diria nada. Ou não sobre isto! Gargalharia talvez, e desataria a correr, gritando já loooonge:
- Nem me pe-ga! Nem me pe-ga!

Porque isso de nos medir pelo que nos tornamos, fazemos nós, não as crianças, nem mesmo as que fomos e de quem já não nos podemos lembrar. Olhando para trás é que as ressignificamos arbitrariamente, emprestando-lhes a seriedade pretensiosa com que teimamos em lidar com tudo, tudo tendo que ter um propósito, um resultado que nos valide socialmente, economicamente, que nos torne bem sucedidos aos olhos do panóptico cravados em nós.
Esta tarefa que a nós mesmos incumbimos é que faz todo o caminho perder a graça. E porque estamos ocupados demais em boicotar-nos ou justificar-nos perante expectativas exógenas é que negamos à criança que nos sonhava, não a profissão, pois nem mesmo era isso que ela queria! Negamo-nos, na verdade, a fruição do próprio e gratuito brinquedo!

E porque não seremos jamais flautistas, ou a primeira bailarina do Municipal, ou escultores, ou domadores de tigres, ou pilotos de avião, ou trapezistas, nem mesmo tentamos ocupar a arena, quando é certo que ninguém nos estaria olhando!

Por que diabos já não nos bastam as palmas a que agradecíamos com o meneio teatral no picadeiro do nosso faz de conta? A cambalhota era um triplo mortal, toda partida de futebol era final de campeonato e nós jogávamos sempre com a garra do artilheiro para a multidão em delírio. E nem nos damos conta de que a multidão éramos nós! Éramos, na piscina do clube domingueiro, o medalhista olímpico e a explosão da nossa própria torcida. E tudo porque, no fim das contas, era o prazer do movimento, não a perfeição, que importava.

E éramos, por entrega ao jogo lúdico, o que quiséssemos ser, sem obrigação de definitividade, sem o peso das “grandes” definições.

Por isso, hoje, decidi conceder-me, já não o ambicioso ofício, mas o antigo brinquedo das palavras. E que imenso prazer me dão, ainda que se acumulem para o mero deleite decorativo do colecionador de pequenas quinquilharias afetivas e outras miudezas de estimação.


sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A visita

Por Roberta Mendes

Não um bairro qualquer, mas o Bairro de Fátima. O aposto não deixava dúvidas: era um bairro de mulher, em que pese a virilidade de suas escadas em ascensão, embora por estas, no mais das vezes, se descesse, pelo trote ágil de rijas coxas colegiais ou com passos desapressados, tardando moles nos degraus.

Os muros descascados pelas unhas dos amantes, crispadas de ciúme ou afoitas de prazer, davam à rua um ar mal-dormido e (de novo masculino) de barba por fazer. Por isso a morena alisava-lhes a textura áspera enquanto subia em direção ao prédio de poucos andares, por sestro de seduzir. Vinha falando e rindo, fazendo à amiga as devidas apresentações do cenário, do ambiente, colocando, como é de praxe nas amizades, legenda afetiva nas coisas: entravam em seus domínios.

Abriu a porta, saudando os gatos que a esperavam, roçando-lhe as pernas com o afetado desdém felino que ela, de si própria, conhecia bem. Por isso, indulgente e cúmplice, redobrava-lhes os afagos.

A casa era pequena e maciça. Seu aconchego lembrava o de um quarto bem cuidado de menina. Aliás, reconhecia-se, ainda, por sob a mulher independente, um orgulho senhoril da menininha anfitriã. O dedo em incansável atitude indicativa, apontando os cantos:

- ...E ali ficam os livros; aqui as fotografias..!

Havia em tudo a graça e o capricho de se parecer com sua dona. Mesmo as janelas, quando abertas: tão rentes às coisas, tão rente à vida!
O bairro entrava-lhe sala à dentro - este, aliás, um dos secretos méritos da anfitriã: o de ser ponte estendida entre as coisas de fora e as de dentro, para não falar, abertamente, do que é do espírito e do que é pagão.

A rua interagia com a intimidade dos cômodos, integrando-os, compondo-lhes a domesticidade aliciante ao estar-se descalço, desobrigado de modos, inteiramente à vontade.

Por vezes, as coisas rebelavam-se num complô anímico de ocultar-se justo quando as queria mostrar a anfitriã, só para revelaram-se depois, profeticamente enunciadas por uns versos de Drummond, pinçados a esmo da grossa antologia, por orquestrações do acaso - este grande roteirista!

Então aparecia o retrato de uma ausência, num recorte estourado de luz contra o escuro sem remissão. Assim se dava a conhecer o outro ilustre morador da casa.
Conviviam, a ausência e ela, em perfeita comunhão. Por isso ela não era só. E também por isso ela ficava só, indefinidamente, rosa carmim se oferecendo e se negando ao beijo predatório do escaravelho sob o tênue escudo, a farpa cega de um acúleo.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Asas do Desejo - Aceitando comentários adicionais!

Nossas trocas...

De: Roberta Mendes
Enviada em: um dia desses
Para: Elisangela Barbosa
Assunto: Senti falta da sua resenha sobre o filme do Wim Wenders

O Asas do Desejo. Eu me lembro que, da primeira vez que eu assisti, pausava longamente e ficava perplexa, pensando, meu Deus, meu Deus, alguém colocou toda essa dimensão sutil e invisível em palavras... e imagens e gestos e expressão terna ou doída de anjo se importando sem poder interferir...!

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De: Elisangela Barbosa
Enviada em: um dia desses
Para: Roberta Mendes
Assunto: RES: Senti falta da sua resenha sobre o filme do Wim Wenders

Pois é amiga, calou fundo o filme. Assisti-lo foi uma coisa séria, sabe quando a coisa é séria, solene até, como se fosse mesmo assim que acontecesse, e por isso comentários de corredor não aconteceram. Bom...

O que são as Asas do Desejo?! Tudo nesse filme é de uma sutileza tão calma e angustiada (até o momento do encontro), tudo tão intenso e contido (mesmo no momento do encontro!)! Curioso para mim foi que houve uma mudança drástica no significado que teve o nome do filme antes de eu vivê-lo e depois.

Assim: asas do desejo remeteu para mim ao desejo que sente um homem para uma mulher (vice versa), mas durante o filme eu me dei conta de que tudo é desejo e viajei na sensação de que todos os desejos da humanidade pareciam passar pelas asas dos anjos tornando-as um tanto quanto mais pesadas! [Roberta Mendes] Pois é justamente o motivo pelo qual achei o Cidade dos Anjos de um reducionismo ultrajante. Não é sobre o amor de um homem e de uma mulher. É sobre o Amor, com A maiúsculo. É sobre se importar com tudo que é humano. Sempre me emociono com aquela cena em que o Cassiel (o anjo que permanece anjo) tenta se aproximar do pensamento do suicida e não consegue demovê-lo do intuito de auto-destruição, de modo que, quando o homem pula, ele urra um desesperado NÃÃÃOO, tão desprovida de autoridade a palavra diante dos desígnios humanos.

O amor, a solidão, a vontade, a saudade, os desejos, as intensidades de each and every being sendo derramas e misturando-se no cosmos... nossa, quantas são as coisas que nos escapam!!! E eles ali, ouvindo e vivendo à sua maneira angelical todas as coisas!

O que foi aquele velhinho? Preciso vê-lo mais algumas vezes para conseguir fazer a passagem, traduzir em palavras, o que aconteceu no meu peito!

A malabarista, que linda! Que alegoria, quanta vontade, quanto desejo e quantas possibilidades... acho que eu também me apaixonei por ela.

Os anjos, os dois, querendo tanto tanta coisa! As cenas em que de preto e branco o filme passa a colorido, tenho que confessar, me emocionaram, eu não estava esperando. Tanto assim que na primeira vez que acontece eu fiquei meio sem saber se aconteceu mesmo ou se era impressão minha...

A ingenuidade feliz do anjo caído, a busca, o encontro, cada um desses momentos renderiam trocas intermináveis de impressões!

Sabe Bob, são tantas as impressões e sensações que me perco! Precisaria vê-lo novamente... como aqueles livros que de vez em quando se consulta para lembrar de que há coisas que não se pode permitir esquecer![Roberta Mendes] porque vc acha que comprei o filme ;-)?

p.s. agora fiquei sentimental dos pés à cabeça... :^)

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De: Elisangela Barbosa
Enviada em: foi sim, eu lembro
Para: Roberta Mendes
Assunto: RES: Senti falta da sua resenha sobre o filme do Wim Wenders

Hihihi, que susto heim?!

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De: Roberta Mendes
Enviada em: foi outro dia
Para: Elisangela Barbosa
Assunto: RES: Senti falta da sua resenha sobre o filme do Wim Wenders

=) Agora, sim ;-)!!

A minha releitura do "Pertencer" de que falávamos...

Por Roberta Mendes

Sobre as velhas pegadas, novos caminhos.
O viajante, ao viajar, sente-se em casa.
O movimento é sua cadeira de balanço e
a confluência entre a meta e a conquista,
o tapete sobre o qual descansa seus sapatos.
Voltar é revisitar a origem do caminho, o ponto de partida.
Mais do que isso: convalidar a escolha de partir. Eis que,
regressando, já não há nada atrás de si sobre o que voltar-se.
A vida está à frente e no impulso de seus pés.
Homem e sombra coincidem
no marco zero da rosa dos rumos.
O passo seguinte assume o risco de uma direção,
dá-lhe um sentido:o homem ao passo e o passo ao homem.
E porque tudo lhe pareça tão claro
sobrevêm-lhe imagens de coisas encaixando-se:
sandálias aos pés,
chaves a fechaduras (metáfora de preencher e libertar),
peças de um quebra-cabeça atraindo-se como ímãs,
espelho quebrando-se ao contrário, refazendo-se,
recompondo a integridade do que fragmentado estava.
Aí está: o ser inteiro. Em seu tamanho real, é dizer,
Maior do que muitas coisas, menor do que outras tantas,
mas, sobretudo, à altura de ser a si mesmo e isso ser
sua bravura e sua maior fragilidade.
Pertencer pressupõe a qualidade dos fortes.
Precisar é que não. Precisar é querer para si,
enquanto pertencer é querer ser de outrem e aplicar-se,
enquanto movimento, a uma outra vida.
A mão estendida, ao precisar, suplica.
Ao pertencer, desprende-se, oferece de si a sua palma:
entrega-se. O sentimento de pertencer consuma-se
com esse transbordamento mesmo, e independe
(enquanto realidade) da recepção do outro.
Se sinto-me tua e o digo é por fidelidade à verdade minha,
por retidão de restituir a ti o que te pertence
e de mim transborda. É todo teu. Eu, toda minha.
Já não meço forças com a solidão,
nem pretendo sobre o amor prevalecer.
Minha força se distende. Assim, o que à força
imóvel estava, projeta-se, ganha impulso,
descomprime-se. Fica-me o coração, assim,
em pulsante repouso - vivo e em paz.
Ou antes, sereno e em paz porque pulsante e vivo.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Suas cores me remeteram a..

O Atelier (de 03.11.97)

Se a música é feita de acordes e pigmentos,
não há alma que fique em branco ao ouvi-la,
nem há um quadro que não seja
uma dança ou não contenha em si um ritmo.
Canta à toa o pintor enquanto
pinta a toada de pincéis e espátulas,
a partitura de cores.
Um assovio azul deixa rastros na tela,
memória do céu impressionante:
exclamação do artista!
Dançam nervos ópticos
entre serpentinas de luz
e o coração, sapateando louco sobre as poças
da chuva vermelha, faz respingar
de vermelho uma silhueta
que se insinuava amarela.
O pintor tem, então, emoções alaranjadas
e desfolha crisântemos lilazes
em clara atitude crepuscular,
sobrepondo a todos os tons
o som roufenho de uma gaita escocesa.
Em lágrimas de óleo, transparentes,
eu, acrilicamente... transpareço. Que remédio?
Eu, irremediavelmente, comovida!
E sinto, sinto muito
que eu nem saiba dizer o que sinto.

- Roberta Mendes

domingo, 11 de janeiro de 2009

Reinventando o Arco-íris

Inspirado no filme “A Massai Branca”

Era uma vez um lugar onde as palavras não podiam sair pela boca, pois elas lá não existiam, podiam ser ditas apenas pelos olhos, que mudavam de cor, conforme a cor do sentimento que enchia o coração.

Nesse lugar só as cores da natureza podiam encher os olhos (dos dois jeitos), de maneira que era preciso prestar atenção a todo o resto em volta e olhar o outro com o cuidado de quem vê se o vermelho dos olhos é como o de um pôr-do-sol: cheio de luz, alegria e esperança; ou como o de sangue, vivaz, passional, intenso, para o bem ou para o mal.

Ao se trilhar os caminhos, era possível ver olhos de todas as cores, amarelos de apatia ou fome; carmim de paixão ou ira; violeta de força e profundidade; azuis tranqüilos; negros enigmáticos ou ressentidos; olhos verdes de frescor; olhos dulcíssimos de mel... quando se sofria de amor ou deslumbramento os olhos ficavam cor de rosa ou laranja!

Tanto eram informantes obscenos que lá não se fitava os olhos dos outros impunemente, acreditava-se que ao fitar os olhos do outro acabavam por imiscuírem-se as almas.

Eis então que o acaso bole com a possibilidade e faz o encontro, nessa terra muda, do dia branca e da noite preto. Estes, habitando o mundo dos olhos coloridos, encontram um no outro a chance de tocarem todas as cores, visto que eram a antítese um do outro e continham neles mesmos as cores para serem todas as cores!

Desejaram tocar-se no momento exato em que se viram e seus olhos refletiram a cor de um nos olhos do outro. Não havia palavra, não havia passado nem futuro, havia apenas todas as cores do mundo em ebulição, no caldeirão imenso do tempo que não mais passava, pois a noite e o dia não mais passavam um pelo o outro.

Só tem, que se o tempo não passa não se curam as feridas, não crescem as crianças, não nascem nem morrem os amores dos homens... a alegria não sucede a tristeza e o ciclo pára. Assim o dia e a noite tinham de passar. A natureza morria num mundo sem tempo, e com ela as cores dos olhos...

Amaram-se refletindo nos olhos todas as cores... Despediram-se.

Veio o silêncio.

E desabou do céu preto uma tempestade de tristeza e saudade... em seguida irrompeu o dia branca, por entre os restos de tempestade. Nasce então, do amor entre o preto e a branca, o arco-íris!!!

Toda vez que sentem uma saudade transparente, assim da cor do gelo, o céu, com a desculpa de uma tempestade, anoitece preto e chora muito, em seguida, com a desculpa de que “depois da tempestade sempre vem a bonança”, o dia irrompe trazendo a branca!

Fazem amor, num intervalo que nem se dá a conhecer aos homens, nasce o arco-íris, pacifica-se o mundo. O arco da promessa sim, o arco da promessa de um amor indescritível por palavra, que a despeito das impossibilidades se vê acontecendo!



Todos os amores são singulares, mas o amor sem palavras, sem explicação ou razão de ser, é único porque tem cores que só se vêem onde não há palavras para descreve-las.






Elisangela Batista Barbosa

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Este é um texto mais antigo, mas é pelo exercício de postar ;-) :


A verdade é que também eu não vira o homem, a princípio. Estava propositadamente distraída, conforme dita a etiqueta urbana como regra de conduta para o não-lugar em que estávamos: o metrô. E não qualquer composição do metrô, mas, mais precisamente, aquela de quase nove da manhã, repleta de pessoas com tanto mais pressa quanto maior a iminência do atraso.

Havendo muitos assentos à escolha, costumo tomar o calculista cuidado de sentar-me à janela, não, é claro, por qualquer pretensão contemplativa, já que a paisagem subterrânea de cabos e trilhos não convoca a qualquer expansão de pensamento.

Se me sentava, como naquele dia, à janela era apenas pelo utilitário propósito de não ser instada, seja por pudores de consciência ou pela adulação de terceiros a ceder o lugar para alguém e ter a amolação de ter que fazer o restante do percurso em pé. Pois era muito mais difícil esforçar-me por não fixar os rostos das pessoas, tendo-os assim à altura do meu, qual espelhos cegos, que se defrontam sem nada refletir. Porque é preciso não olhar o outro, sobretudo não ater-se a ele com interesse, não tentar jamais adivinhar por detrás da mímica do rosto a sensação correspondente.

Aliás, as inovações tecnológicas têm tido grande e positivo impacto na otimização do teatro urbano do alheamento. São engenhosas redomas eletrônicas, que superam, com grande vantagem, o manuseio desastrado do papel-jornal. Estes (os jornais), também se modernizaram e têm, por vezes, exemplares de folhas mais curtas, e, portanto, mais funcionais à leitura em trânsito.

Não infensa aos artifícios escapistas da modernidade seguia eu, sentada à janela, fones ao ouvido, olhando cegamente através dela para o fio contínuo de paredes.

Aos versos da música (“tem certos dias /em que eu penso em minha gente”), reagi instintivamente, olhando para dentro do vagão. Primeiro indistintamente, para a massa uniforme:

(...)“E sinto assim todo meu peito se apertar”.

Sugestionada, aguçaram-se-me os olhos:

“(...)Porque pareceQue acontece de repenteComo um desejo de eu viverSem me notar
(...)”

E verso a verso, esculpiu-se diante dos meus olhos um rosto. O rosto enrugado e tímido do homem, encimado por um cabelo muito branco, de tal forma branco que era impossível adivinhar-lhe a antiga cor.

Equilibrava-se com dificuldade, na disputa silenciosa e desigual por um minguado palmo do mastro central, em que se apoiar. Ninguém lhe cedia espaço. Ninguém o via.

A gravação soava no vagão: “Os assentos de cor laranja são preferenciais para idosos, gestantes e pessoas com crian(...)”.

Um jovem levantou-se determinado do assento preferencial (pensei que lhe cedia o lugar), no que foi imediatamente substituído por uma gorda senhora que se atirou pesadamente, ocupando o espaço com hostilidade canina.

Equivaliam-se em estatura, quase, o senhor e o estudante que se levantara, agora à sua frente, de mandíbulas insolentes a mascar chiclete, mas, curiosamente, o jovem, olhava-o, como que por sobre o ombro, por sobre (me ocorreu) a existência.

E porque nada pedisse o senhor, tanto mais me crescia a urgência de lhe ceder o meu lugar. No entanto, como ceder a ele, a ele, especificamente, o meu lugar, se estávamos à boa distância e os circundantes espreitavam com rapina ferocidade o mínimo movimento nos assentos?

Fiz menção de erguer-me, o vizinho já encolhia de má vontade as pernas, liberando-me a passagem, mas o velhinho se encaminhou à porta do vagão, parece que menos por ter efetivamente chegado a seu destino do que por dócil obediência ao movimento da multidão, que se derrama, a cada manhã, sobre a plataforma da estação Carioca.

Voltei a sentar-me, desalentada, privada de ter de mim ao menos o orgulho besta de uma minúscula boa ação, e virei o rosto em direção à plataforma, afastando-me, com isso, o mais que podia da cena. E do pensamento.

Eis que ali, aguardando o trem no sentido Zona Sul, um pai, puxando uma garotinha pela mão, ensinava-lhe, por brinquedo, sem saudade ou despedida, um aceno de adeus.

Um tanto alegoricamente, a composição em que eu estava partia, indiferente. Sem saudade ou despedida. Sem despedida ou saudade, partia, como é destino de tudo que corre nas veias escuras da cidade.

- Próxima estação: Uruguaiana
- Roberta Mendes

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A Lucidez Amarela

Por Roberta Mendes

Não tenho suficiente conhecimento de botânica para afirmar, se o fato de uma folha tornar-se amarelada significa, necessariamente, que esteja seca, a caminho, portanto, de desprender-se. Será, possivelmente, o caso nesse gênero de árvore, enquadrado por este ângulo particular da janela, em que a copa verdejante se faz pintar, aqui e ali, com salpicos amarelo-alaranjados.

Estes “spots”, justamente, é que chamam a atenção, pela descontinuidade do verde que representam. São poucas e esparsas folhas, cercadas pelo verde isolamento. Sequer têm o conforto de serem amarelas entre suas iguais.

Pois quero crer que essas folhas ousam o louro que têm e não apenas que aquiescem a ele por inexorável decurso das estações: são amarelas contra uma lógica verde dominante.

Seja a elas reconhecido o mérito da diferenciação, eis que romperam com o mimetismo dócil à harmonia totalizante. E não é fácil expor-se assim, em cor berrante e cítrica de coisa toda em destaque. Não é fácil ser em evidência.

Não é que duvide de que o processo até o fulvo desfecho seja, de fato, desgastante, tampouco seria incorreto supor que o amarelo em tão convicta vibração seja o último arroubo de uma grande força vital, extenuando-se, mas é que das folhas, assim de vê-las, ficou-me a impressão mais da atitude que do cansaço. Pouco importa o tempo que dure a dourada glória, se estão secas, se devem, em breve, desprender-se. Também, o que hão de temer ante ao outonal destino, se tiveram, em vida, a transgressora bravura para a autenticidade?

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Na manhã do dia Seguinte

Tudo era calmo e o mundo parecia bem ter chegado a um tempo e lugar onde a vida seguia tranqüila seu fluxo de natureza.

De maneira que as pessoas espalhavam-se estrategicamente pelos cantos da praça onde uma sombra amiga as protegia e acalentava, enquanto as crianças, que ainda não são pessoas, mas anjinhos barulhentos, brincavam com seus brinquedos de natal e tinham os cabelos desgrenhados ao vento – estavam libertas.

Até os carros, em sua maioria, fizeram o favor de ausentarem-se do circuito. Pairava um silêncio estranho (por não ser usual) que dava a sensação de os pensamentos estarem sendo pensados em volume alto, falavam conosco mais alto que de costume.

Na manhã do dia seguinte, hoje, o ar parecia mais limpo, o dia parecia condescendente para com os homens que já não disfarçavam seu cansaço, sua ansiedade e sua esperança doída de que o ano que começa seja melhor que o que termina, a despeito de eles não terem a menor idéia de como contribuir para tanto. Hoje tudo fazia lembrar de que este é o primeiro dia de um ano novo que já chegou, tornando os prazos apertados, as atitudes urgentes, as decisões prementes, as mudanças obscenas...

A vida pulsava irremediavelmente no seu ritmo e todos pareciam resignados apenas, e eu tive então de questionar: é isso? É só isso que se me apresenta no dia de tua inauguração?

....

Eis que tomei por resposta a cena que se passou diante dos olhos de quem quisesse ver, como a descrevo em seguida:

Eram dois, regulando seus 17 anos caminhavam de mãos dadas, ambos de porte atlético e tez morena. Seguiam como que carregando o astro rei na barriga e todas as paixões no peito, com bem pouca roupa cobrindo o corpo. Sérios, sentindo-se já homem e mulher, feitos à imagem e semelhança um do outro, de modo que eram cúmplices, talvez por isso não sorrissem... Chamou-me a atenção sua seriedade, nenhum sorriso, apenas um caminhar, que de tão unido fazia-os parecer um.

Quando de repente, muda, ela lhe lança o desafio e (finalmente!!!) um sorriso! Com um meneio de cabeça aponta uma das escadarias de Santa Teresa e dispara numa carreira que me tirou o fôlego! Antes que a negativa dele pudesse ser notada ela já alcançava larga vantagem na distância, fazia-se necessário alcança-la e por isso ele também dispara.

Quase a alcança e nesse quase ela solta um gritinho como o fazem as meninas arrebatadas de alegria e excitação, arrancando dele mais energia ainda para alcança-la de vez... ao chegarem ao topo ele lhe agarra a cintura e ambos se entregam às gargalhadas que lhes agita o corpo vivo... eles estavam vivos!

Entendi, estavam vivos, esteja viva, mantenha viva... ok, acho que posso fazer isso!
- Elisangela Barbosa

Ainda sobre o Reveillon:

Estava lendo desprentensiosamente a versão digital do jornal, para ver como havia ficado gravado na memória coletiva os festejados fogos de Copacabana, já que, ao presenciá-los, gravei-os sob o prisma parcialíssimo das minhas próprias impressões.

Havia ali algumas informações preciosas para uma reconstituição mais precisa do macro-cenário da realidade. Por exemplo, que três pessoas foram atingidas por balas perdidas. E estas, certamente, não experimentaram a sensação de civilidade que a festa me proporcionou.

A verdade é que a queima de fogos em Copacabana me emociona. Talvez porque eu nada espere dela, ao contrário do leitor que deixou no jornal seu depoimento, dizendo-se muito decepcionado com os fogos, por causa da fumaça que a alta nebulosidade provocou (e, me pergunto, que culpa tem a cidade ou os organizadores disso?).

É a quarta vez que a assisto e, em todas as vezes, impressionou-me a multidão que desce em ordeira e fraternal euforia, formando uma procissão espontânea de branco em direção à praia. São famílias, com avós acompanhando netos pequenos; grupos de amigos; casais antigos ou em formação, todos seguem conversando ou rindo e levando seus próprios apetrechos para a festa, que podem ser desde cadeiras de praia, a taças de plástico, braçadas de flores ou mesmo estranhas e kitsch alegorias.

Chegando-se à Atlântica, encontra-se sempre a faixa de areia já tomada pela multidão. As varandas dos prédios coalhadas de silhuetas enfileiradas na contraluz. E, por um momento, todos esperam a mesma e única coisa. Parece-me um modesto triunfo da fraternidade que dois milhões de pessoas, em plena cidade do Rio de Janeiro, difamada mundialmente por sua latente violência, consigam justapor-se em um espaço tão limitado com razoável civilidade, motivo pelo qual parece-me de uma relativa irrelevância o número das ocorrências registradas pelas estatísticas.

Não é tanto a longa exibição pirotécnica que me mobiliza, mas os excertos das cenas circundantes que o olhar captura, sobretudo aquelas que revelam pequenas ilhas de cumplicidade e afeto em meio à turba amorfa, como a do turista gay, girando em torno do namorado com a câmera na mão, filmando-o em vertiginosa ciranda de risos contra o céu colorido.

De alguns prédios, caíram balões brancos. Deixei-me arrebatar pela brincadeira e me pus a correr atrás da cauda de barbante para puxar um para mim. Satisfeita com meu recém conquistado brinquedo, agitei-o para o alto, encolhendo e distendendo o barbante, ioiô ao contrário, deliciando-me com seu flutuante balé. Foi então que senti a mão do menininho puxar-me a barra da saia, o olhar suplicante de incontido desejo para o meu balão. Pediu-me sem rodeios: me dá esse balão, tia? Ah, se eu pudesse daria era um abraço, pensei, já irreversivelmente sentimental e estendi o balão ao menino, profundamente grata por ter despertado em mim essa gratuita generosidade maternal de que sou, às vezes, capaz. Vi-o afastar-se com as mãozinhas inábeis, tentando sustentar com sofreguidão o balãozinho branco no ar, um tanto frustrado com a precariedade de seu vôo. E me dei conta, com um laivo de melancolia, de que não era o brinquedo que desejara, mas a brincadeira. De fato, havia no momento em que me interpelara o menininho uma grande quantidade de balões no chão. O meu interessara-o em particular pelo movimento gracioso da brincadeira que eu lhe imprimira. Mas como dizer-lhe: "ah, menino, é preciso saber inventar as coisas a partir delas mesmas, transcendê-las, animá-las com nosso sopro criador"?

Conselho, aliás, que igualmente serviria ao tal leitor decepcionado com os fogos de Copacabana...


- Roberta Mendes

"Preciso não dormir / Até se consumar..."

Por Roberta Mendes

A verdade é que esse raro silêncio em Copacabana do dia 1º de janeiro me tira o sono, acostumado que é a ser embalado pelo tráfego contínuo e ruidoso da Pompeu Loureiro.

Esse silêncio (dentro das possibilidades urbanas da palavra), que me manteve acordada até às quatro da manhã, tirou-me da cama bem cedo, por volta das nove horas, quando, aliás, se fez mais intenso: Copacabana dorme.

Eu, por uma antiga vocação de vigília, fico alerta. Ou, mais precisamente: viva. Pois não se trata da insônia inquieta dos presságios, dessas em que se luta para dormir em vão. Aliás, acabo de ouvir canto de pássaros! Ao que senti, instantaneamente, suavizar-se-me a expressão do rosto, em um sorriso de enternecimento. Pois é precisamente isto que me mantém acordada: o senso de ter a oportunidade irrecusável de experimentar os pequenos e improváveis encantos de uma cena tão pouco usual.


Fico, portanto, voluntariamente acesa. Prazerosamente acesa. Por avidez de não desperdiçar a experiência do silêncio e dos outros sons que ele revela. Por puro deleite de não desperdiçar a travessura de estar viva enquanto os outros dormem. Pelo voyeurismo tal como o de fitar a quem se ama em seu sono saciado de depois do gozo.

Desprevenida de mim, tomo a cidade de assalto. Saqueio a sua beleza de ruas vazias, desfrutando assim, pelos olhos e com os ouvidos, a trégua instável de seu incessante movimento.

Às vezes, a cidade, sentindo-se observada, ameaça acordar e faz um movimento brusco com um caminhão ao longe, como a afugentar instintivamente a presença que lhe espreita. Então suspendo a respiração e me encolho, retesada e muito quieta, escondendo-me do ângulo largo da janela. Refeito o silêncio, relaxo os músculos, aliviados de seu súbito disfarce de imobilidade: ainda dorme. E, enquanto dorme, é minha! É toda de mim, que a experimento, com a tirania de cinco apurados sentidos, plenos de vê-la, ouvi-la, respirá-la. E de tatear nela a textura íntima, imaterial do encanto com a polpa dos dedos (sorrateiros) que a digitam.